Marc Plattner escreve sobre a segunda parte da trilogia projectada por Robert Kagan sobre a história da política externa americana, incluindo nas suas dimensões morais e ideológicas. | |
The Ghost at the Feast America and the Collapse of World Order, 1900-1941 (Dangerous Nation Trilogy) |
Chairman IEP, International Advisory Board; Fundador e co-editor, Journal of Democracy
Robert Kagan é um dos escritores americanos mais proeminentes no que diz respeito a assuntos internacionais, sendo amplamente conhecido pelas suas colunas no Washington Post e um número crescente de pequenos livros provocativos. Esses volumes incluem Of Paradise and Power (famoso pela sua proclamação de que “os americanos são de Marte e os europeus são de Vénus”), The Return of History and the End of Dreams e The Jungle Grows Back. Mas Kagan é também um historiador e académico que há muito trabalha numa história em três volumes da política externa dos EUA. O primeiro volume desta futura trilogia, Dangerous Nation, que cobre o período anterior ao século XX, foi publicado em 2006. Agora, dezassete anos depois, o segundo volume The Ghost at the Feast: America and the Collapse of World Order, 1900-1941 está finalmente cá fora.
É frequente os comentadores de eventos contemporâneos dedicarem muita atenção às origens da Segunda Guerra Mundial – a queda da República de Weimar, a ascensão de Hitler e dos nazis, o acordo de Munique e o fracasso das democracias em responder de forma decisiva ao desafio. do fascismo. Kagan aborda todos esses desenvolvimentos neste volume, em alguns casos divergindo das interpretações convencionais; por exemplo, ele afirma que foi na década de 1920 (e não na década de 1930) que “a paz foi realmente perdida”. Mas as secções mais reveladoras do livro lidam com as duas primeiras décadas do século XX - especialmente com a política, tanto internacional quanto interna, que levou ao eventual envolvimento dos EUA na Primeira Guerra Mundial.
Com 468 páginas de narrativa e 124 páginas de notas de rodapé, este novo volume pode a princípio parecer ameaçador para não especialistas, mas está escrito de forma clara e graciosa e conta uma história emocionante. Eu, depois de terminar cada capítulo, não queria deixar o livro de lado por muito tempo, como acontece com a maioria das minhas leituras académicas. Ficava ansioso por passar para o próximo capítulo. O livro tem algum do apelo e da legibilidade de um bom romance.
Suspeito que quase todos os leitores do relato histórico de Kagan descobrirão que ele contém paralelos surpreendentes com as questões e tendências com que hoje nos confrontamos. Mas Kagan evita a história “presentista”. Em grande parte, ele permite que os eventos do passado contem a sua própria história, deixando que sejam os leitores a retirar deles lições contemporâneas. Apesar dessa restrição autoral, a relevância do seu relato para os problemas que enfrentamos hoje — especialmente em relação à guerra na Ucrânia — rapidamente se torna aparente para leitores sérios, e tal tem-se reflectido na ampla atenção mediática que este livro académico já recebeu.
Os Estados Unidos só entraram na Primeira Guerra Mundial em 1917, quando o conflito já durava há quase três anos. Isso pode explicar em parte porque é que esta teve uma influência menos profunda e duradoura na memória histórica e na cultura americana do que a Segunda Guerra Mundial, e porque é que as suas lições sobre política externa e política interna tendem a ser raramente discutidas, ou mesmo negligenciadas.
Kagan afirma que uma é hoje comum avaliar a Primeira Guerra Mundial e considerá-la uma loucura na qual “todas as potências são igualmente condenadas por ‘andar sonâmbulas’ no conflito”. Kagan tem uma visão diferente, argumentando que “para os participantes da época, de ambos os lados, e incluindo os americanos, a guerra foi uma batalha sobre moralidade e ideologia, uma luta entre o certo e o errado, entre o bem e o mal”. Essa certamente não foi a visão que prevaleceu na América inicialmente, quando quase todos, incluindo o presidente Woodrow Wilson, favoreciam uma política americana de estrita neutralidade e se opunham ao envolvimento no que era visto como uma briga apenas europeia.
As primeiras respostas americanas à eclosão da guerra reflectiram amplamente as preocupações internas, incluindo o impacto potencial na economia. Outro factor chave era a diversidade étnica que caracterizava os Estados Unidos. Embora a simpatia pela Grã-Bretanha e pelos Aliados predominasse em muitos sectores, esse não era o caso entre os irlandeses-americanos, que eram hostis à Grã-Bretanha por causa do seu contínuo domínio da Irlanda, ou para os germano-americanos (que na época constituíam cerca de 20% da população). As comunidades alemã e irlandesa, ambas politicamente activas nos EUA, rapidamente vocalizaram o seu apoio às suas terras ancestrais. Em setembro de 1914, Wilson declarou: “Temos que ser neutros, pois, caso contrário, as nossas populações mistas entrariam em guerra umas com as outras”.
No entanto, a opinião pública americana passou por uma grande mudança nos dois anos e meio que se seguiram e, a 6 de abril de 1917, o Senado aprovou por oitenta e dois contra seis votos uma resolução que declarava guerra à Alemanha. As causas mais imediatas da entrada dos EUA na guerra ao lado dos Aliados foram, primeiro, a decisão da Alemanha no final de janeiro de 1917 de retomar os ataques submarinos irrestritos aos navios aliados e neutros; segundo, a fuga de informação do “telegrama Zimmerman” que revelava a intenção da Alemanha de recrutar o México como aliado de guerra, em troca de ajuda na recuperação dos territórios que o México tinha perdido para os Estados Unidos na Guerra Mexicano-Americana de 1846-1848. Mas outros incidentes prévios principalmente o naufrágio do RMS Lusitania em maio de 1915 já tinham começado a mudar a opinião americana contra a Alemanha.
O Lusitania, um navio de cruzeiro britânico que navegava de Nova Iorque a Liverpool, foi torpedeado e afundado por um submarino alemão, o que resultou na morte de quase 1200 homens, mulheres e crianças, incluindo mais de 120 americanos. Este incidente provocou indignação pública, mas a indignação não foi suficiente para superar a resistência americana de ser arrastado para a guerra. Levaria quase dois anos inteiros até que Wilson (que monitorizava cuidadosamente o sentimento popular) e o povo americano superassem a sua relutância em envolver-se no conflito.
Kagan no entanto argumenta que, mesmo que o naufrágio do Lusitania não tenha precipitado a entrada dos Estados Unidos na guerra, teve um efeito duradouro na reformulação da opinião popular americana sobre a Alemanha do Kaiser. Não foi apenas o acto em si, mas o facto de o massacre de civis inocentes, incluindo mulheres e crianças, ter sido tão abertamente celebrado pelos alemães. Além disso, relatos de atrocidades de guerra alemãs, especialmente na invasão e ocupação da Bélgica, ajudaram a fomentar a visão entre os americanos de que os alemães eram cruéis e indignos de confiança. (Embora alguns desses relatos tenham sido exagerados, os historiadores hoje confirmam que os alemães cometeram atrocidades em larga escala.) Essa visão dos alemães alimentou percepções do conflito como uma luta entre uma ditadura altamente militarizada e brutal e os amantes da liberdade e Aliados mais humanos (com excepção da Rússia czarista, claro). Embora alguns considerem essa imagem caricatural, Kagan afirma de forma persuasiva que havia um núcleo sólido de verdade na declaração de Wilson de que a América estava a entrar numa guerra para tornar o mundo seguro para a democracia e a liberdade política.
A representação da guerra como uma batalha entre a democracia e a autocracia não era apenas uma ideia de Wilson. Foi repetida por outras figuras americanas importantes, incluindo o seu oponente republicano na eleição presidencial de 1916, Charles Evans Hughes, que denunciou o “ataque violento da Alemanha contra a liberdade e a própria civilização”. Pelo menos na narrativa de Kagan, esse enquadramento dependia menos de uma defesa de princípios democráticos liberais abstratos e mais de uma aversão ao comportamento implacável e incivilizado do regime autocrático. Portanto, seja qual for a vantagem que a Alemanha possa ter recebido do terror que inspirou aos seus inimigos, ela pagou o preço de incorrer no poderoso antagonismo do povo americano.
É difícil ler sobre esse aspecto da Primeira Guerra Mundial e não pensar na recente invasão russa da Ucrânia. Os Estados Unidos e os seus aliados europeus não enviaram as suas próprias tropas para o campo de batalha, mas o fornecimento de armas e outras formas de assistência aos ucranianos foram fundamentais para o seu sucesso. E enquanto o presidente Biden e outros líderes ocidentais de facto apresentaram o conflito como uma luta entre democracia e autocracia, o que parece ter comovido mais a opinião pública nas democracias foi a exposição dos crimes de guerra e atrocidades russas em Bucha e outras cidades. O objectivo de Vladimir Putin de aterrorizar os ucranianos parece tê-lo levado a desconsiderar o dano que essa política infligiu à posição global do seu próprio país e a negligenciar o impacto que isso teria no endurecer da espinha do público ocidental.
No seu capítulo final, Kagan afirma que os americanos decidiram intervir nas duas conflagrações globais do século XX não para proteger sua pátria, mas “para defender e restaurar o tipo de ordem liberal na qual os americanos preferiam viver e que fornecia o maior grau de protecções contra possíveis ameaças futuras”. A princípio, isso pode soar como uma visão “idealista” ou ingénua, mas Kagan rapidamente lhe injecta uma grande dose de “realismo”: Embora os americanos na época vissem o seu papel no cenário mundial em “termos puramente defensivos, … este era também uma exercício em hegemonia política, ideológica e militar”. Os americanos acreditavam que estavam certos ao defender a democracia. Mas “visto de uma perspectiva mais objetiva e neutra”, Kagan afirma, eles “apenas estavam certos se alguém acreditasse que o próprio liberalismo estava certo e os oponentes do liberalismo estavam errados”. Se não fosse esse o caso, a ordem mundial que a América procurava defender “não era mais justa do que qualquer outra ordem mundial estabelecida e mantida pela força”.
O que fazer com este aparente recuo até ao relativismo de um autor que frequentemente enfatiza a importância da moralidade e das ideias na política internacional? Kagan é reconhecido tanto como um firme defensor do apoio à democracia (mesmo no Egipto de Sisi, por exemplo) quanto como um defensor do tipo de política obstinada e de hard-power frequentemente associada à escola “realista” nas relações internacionais. Ora, não há necessariamente uma contradição em ser tanto a favor da promoção da democracia quanto de uma defesa forte. Mas surgem inevitavelmente situações em que os imperativos urgentes de segurança estão em desacordo com o objectivo de longo prazo de promoção da democracia. Presumo que Kagan não contestaria isso, mas em The Ghost at the Feast ele não aborda explicitamente a questão de como lidar com situações em que esses dois imperativos apontam em direções diferentes.
O ensaio de Kagan na edição de janeiro de 2023 da Foreign Affairs termina com estas palavras: “O conflito de grandes potências e a ditadura têm sido a norma ao longo da história humana, a paz liberal uma breve aberração. Apenas o poder americano pode manter as forças naturais da história sob controlo”. Embora eu certamente concorde que hoje o uso criterioso do poder americano é indispensável para a preservação da ordem mundial liberal, a formulação de Kagan exagera a raridade e a fragilidade do liberalismo. As últimas duas décadas certamente testemunharam alguns contratempos para a democracia liberal, mas os últimos séculos também testemunharam a crescente força das nações liberais. Bem antes da fundação dos Estados Unidos, a Inglaterra liberal tornou-se a principal potência mundial. Como Bacon, Locke e Montesquieu previram, a combinação de liberdade individual, Estado de Direito, comércio, ciência moderna e domínio dos mares permitiu que a nação insular superasse os seus inimigos continentais.
A predominância contínua da democracia liberal está longe de ser assegurada. Enfrenta desafios de poderosos rivais autocráticos. Mas acho que é um erro concluir que a história está inevitavelmente do lado do despotismo e não da liberdade. Há muito tempo ficou claro que a democracia liberal tem algumas fraquezas sérias, mas também tem subjacentes grandes pontos fortes. Sim, no futuro previsível, o sucesso da democracia liberal dependerá do poder americano, mas esse poder em si deriva das fundações liberais da América.
Tradução por Maria Cortesão Monteiro
Artigo originalmente publicado na revista American Purpose, a 12 de Abril de 2023.
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