Nunca na história moderna passámos tantos anos sem um confronto militar entre as principais potências. | |
Portugal na Nações Unidas - 65 Anos de História Organizado por José de Freitas Ferraz e Raquel Duque |
Secretário-Geral das Nações Unidas
Há 75 anos, entre os escombros e as ruínas da Segunda Guerra Mundial, os líderes mundiais deram um passo histórico e ousado. Muitas tentativas anteriores de assegurar a paz e o progresso através da cooperação internacional haviam falhado. Não obstante, os delegados que se reuniram em São Francisco no ano de 1945 atreveram-se a tentar mais uma vez e construíram uma nova Organização que passou a chamar-se Nações Unidas.
O acordo sobre a Carta das Nações Unidas fechou uma era e abriu outra. Findo o regime genocida nazi, abria-se a expetativa dos direitos humanos. O nacionalismo exacerbado e o equilíbrio precário de poderes que deu origem a duas guerras mundiais de efeitos catastróficos desapareceram; surgiu a promessa de segurança coletiva, a resolução pacífica de conflitos e o Estado de Direito. E, no lugar da tentativa anterior de criação de uma organização internacional — a Sociedade das Nações — as novas Nações Unidas fundaram a sua existência alicerçada nas normas e nas difíceis lições aprendidas no passado.
Os arranjos multilaterais do pós-guerra demonstraram uma impressionante folha de serviço — poupando milhões de vidas e avançando no sentido da condição humana. Cumpriram uma tarefa fundamental que foi a de evitar a Terceira Guerra Mundial: nunca na história moderna passámos tantos anos sem um confronto militar entre as principais potências — um grande feito do qual os Estados-Membros se podem orgulhar, e que devemos lutar por preservar.
Com o passar das décadas ocorreram outras conquistas históricas, incluindo tratados de paz e a manutenção da paz; o processo de descolonização; a elaboração das normas de direitos humanos e mecanismos para os defender; o triunfo sobre o apartheid; a distribuição de ajuda humanitária que salva as vidas de vítimas de conflitos e desastres; a erradicação de doenças; a redução continuada da fome; o desenvolvimento progressivo do direito internacional; os acordos marcantes para proteger o ambiente e o nosso planeta. Mais recentemente, o acordo sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e o Acordo de Paris sobre as Alterações Climáticas proporcionaram uma visão inspiradora para o século XXI.
No entanto, ainda há muito por fazer, e as realidades de hoje são mais complexas do que nunca. Avultam calamidades climáticas, a biodiversidade está a colapsar e a pobreza está novamente a crescer. O ódio espalha-se, as tensões geopolíticas escalam e as armas nucleares mantêm-se em alerta imediato. As tecnologias transformativas abriram novas oportunidades, mas também expuseram novas ameaças. A
desigualdade de género está disseminada universalmente — parte de um retrocesso nos direitos humanos por todo o mundo. E as pessoas continuam a perder a confiança no poder político; as manifestações de 2020 contra o racismo foram precedidas por protestos generalizados contra a desigualdade, a corrupção e a falta de oportunidades por todo o mundo — queixas que têm ainda de ser abordadas.
E agora um vírus microscópico deixou o mundo de cabeça para baixo, matando mais de 1,8 milhões de pessoas e causando devastação económica. Desde o início, as Nações Unidas têm estado a trabalhar para salvar vidas, para controlar a transmissão do vírus, para mitigar as consequências e promover a boa recuperação. As nossas cadeias de fornecimento globais ajudaram a fornecer equipamento de proteção individual e outro material médico, a mais de 130 países. Continuamos a pressionar para que haja um cessar-fogo global e para combater a desinformação. Desde o início que temos vindo a defender um pacote de ajuda massivo de modo a apoiar os países e os povos mais vulneráveis do mundo. E pedimos que a vacina seja vista como um bem público global, acessível a todos.
A COVID-19 expôs não apenas as desigualdades do mundo, mas também graves fragilidades que vão muito além da pandemia. A erosão do regime de desarmamento nuclear e a falta de regulamentação das fronteiras do ciberespaço são apenas duas áreas que poderiam produzir uma verdadeira emergência global na próxima década.
A maior vulnerabilidade de todas é sem dúvida a relacionada com as alterações climáticas. Apesar de a pandemia da COVID-19 ter diminuído temporariamente as emissões, os níveis de dióxido de carbono continuam em níveis sem procedentes. A última década foi a mais quente de que há registo. Todos os anos, incêndios e cheias, ciclones e furacões quebram novos recordes, causando a maior devastação naqueles que menos contribuíram para o aquecimento global, e que estão mais mal equipados para lidar com estas situações. A ciência diz-nos que a menos que diminuamos a produção de combustíveis fósseis em 6% por ano até 2030, tudo irá piorar. Ao invés disso, o mundo está a caminho de um aumento anual de 2% desta produção. Sem uma ação urgente, poderemos estar a dirigir-nos para um aumento de temperatura catastrófico de três a cinco graus durante este século.É por isso que o objetivo central das Nações Unidas para 2021 é mobilizar uma verdadeira Coligação Global para a Neutralidade Carbónica — zero emissões de gases de efeito de estufa efetivas até ao ano de 2050.
A nível internacional, necessitamos de um novo acordo global de modo a assegurar que poder, riqueza e oportunidades são partilhadas de forma mais equitativa
Os fundadores das Nações Unidas viveram, eles próprios, uma pandemia global, uma depressão e uma guerra, e aproveitaram a oportunidade para plantar as sementes de algo novo e melhor. Hoje, enquanto mergulhamos na recuperação da pandemia, devemos fazer o mesmo.
Peço que se crie um novo contrato social a nível das nações. Este deveria abarcar uma nova geração de proteção social e de redes de segurança, incluindo Cobertura de Saúde Universal e a possibilidade de um rendimento básico universal. A educação e a tecnologia digital deverão ser os dois grandes facilitadores e equalizadores.
A nível internacional, necessitamos de um novo acordo global de modo a assegurar que poder, riqueza e oportunidades são partilhados mais equitativamente. Necessitamos de uma globalização justa, uma voz mais forte para os países em desenvolvimento e reformas nas instituições de Bretton Woods e nas próprias Nações Unidas.
Também fiz um apelo à ação sobre direitos humanos, abarcando áreas-chave como a igualdade de género, a proteção do espaço cívico, ameaças em tempo de crise humanitária e problemas de fronteiras como os do ciberespaço. A própria pandemia realçou graves desafios aos direitos humanos.
Não conseguiremos responder a esta crise regressando ao que fomos ou escondendo-nos nas nossas conchas nacionais. Hoje, temos um excedente de desafios multilaterais e um défice de soluções multilaterais. O mundo necessita de mais, e mais eficiente, multilateralismo, com visão, ambição e impacto. Ninguém quer um Governo mundial — mas devemos continuar a trabalhar juntos para melhorar a governação do mundo.
A reforma da governação global deverá ser um passo em frente na criação de um mundo mais justo que possa resolver os problemas partilhados antes de estes nos esmagarem. Necessitamos, mais do que nunca, de estruturas de governação globais com um papel a desempenhar bens públicos globais cruciais, incluindo a saúde pública, a ação climática, o desenvolvimento sustentável e a paz.
O multilateralismo do século XXI deverá ser interligado. Deverá ligar a família das Nações Unidas a outras instituições globais, que vão desde as instituições financeiras internacionais a organizações regionais e alianças comerciais.
Além disso, o multilateralismo do século XXI deverá ser inclusivo. As Nações Unidas de hoje deverão ir além dos Governos por forma a reconhecer o papel da sociedade civil, das regiões e das cidades, das empresas e das instituições académicas. Necessitamos de alargar o nosso círculo de envolvimento para tirar partido das perspetivas e da especialização de todos estes setores, e muito mais.
As nossas operações de manutenção da paz por todo o mundo são uma expressão da solidariedade de que o mundo necessita nesta altura. A nossa assistência humanitária continua a chegar a milhões de pessoas com meios capazes de salvar vidas. O sistema de desenvolvimento das Nações Unidas apoia Governos nos seus esforços para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. E estamos a reforçar as Nações Unidas a partir do seu âmago, incluindo um grande esforço para atingir a igualdade de género.
Desde o século XIX Portugal tem sido um defensor ativo do multilateralismo: participámos no Congresso de Viena e na Conferência de Berlim e fomos membros fundadores da Sociedade das Nações.
Mesmo durante os 48 anos de ditadura o Governo português seguiu esse caminho considerando importante a nossa presença nos fora multilaterais. Por isso, mantivemos a nossa presença na Sociedade das Nações e solicitámos a adesão de Portugal às Nações Unidas logo em 1945, embora, devido ao veto soviético, só tenhamos sido aceites uma década mais tarde; a quase paralela adesão do país à NATO e à EFTA como membros fundadores ilustram igualmente essa postura que, desde o 25 de Abril, tem sido assumida de forma sistemática por todos os Governos portugueses.
A cooperação internacional é, atualmente, mais importante do que nunca. Esse espírito que alimentou as Nações Unidas durante 75 anos guiar-nos-á pelo período crucial que temos pela frente. A pandemia implicou o trabalho verdadeiramente heroico de tantas pessoas. Mostrámos que conseguimos fazer mudanças grandes e imediatas. E aquelas ideias que pareciam apenas sonhos e esquemas mais recônditos estão atualmente sobre a mesa, ou são uma tendência dominante. Isto mostra o que pode ser feito perante uma nova emergência; mostra que podemos construir o futuro que queremos — um futuro de paz e prosperidade para todos, num planeta saudável.
Prefácio do livro
Portugal nas Nações Unidas – 65 Anos de História.
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