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Repensar o Estado


 

Tem sido recorrente no discurso político as muitas preocupações que directamente derivam de questões ociais, nada mais natural em particular em tempo de crise. Da mesma forma ue a relação entre a política lactus sensus e a sociedade é directa, também a elação entre políticas stricto sensus e os problemas sociais é imediata.

 

Eugénia Gambôa

Professora Auxiliar Convidada do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Na abordagem às políticas públicas, porque se tratam efectivamente de escolhas entre propostas de soluções alternativas com efeitos futuros, temos caído no erro, ideologicamente deliberado ou não, de sistematicamente esquecer a dimensão passada. Se é verdadeiro um móbil de futuro de que nenhuma proposta política democrática é insensível aos problemas sociais e que todas elas sem excepção procuram traduzir o que consideram ser a persecução da vida boa, é ao nível do presente e sobretudo no âmbito da interpretação do passado que as diferenças mais se fazem sentir.

Desde a década de 30 do Século XX que assistimos a um crescimento contínuo do Estado, um processo comum, apesar de desigual quer em peso quer em dimensão, nas sociedades ocidentais. Um fenómeno assente num ideal de construtivismo social by design, numa crença no virtuosismo da engenharia social que na sua ânsia de resolver os problemas sociais ignorou deliberadamente a constatação de que numa tabela imaginária de medição do grau de intervenção do Estado na sociedade encontramos no seu ponto mais elevado propostas totalitárias e anti-democráticas, quer em nome da igualdade quer em nome da ordem.

Se, no plano económico as sociedades democráticas e liberais contrariaram o modelo económico centralizador e planificador, uma opção a que a história e os factos vieram a dar razão, optando ao invés por modelos de economia de mercado onde a intervenção do Estado ocorre quando os resultados expectáveis do livre funcionamento do mercado são contrários ao interesse geral, dando ênfase ao papel regulador e supervisor do Estado. No plano social, e em particular na dimensão da solidariedade, permaneceu cristalizada a ideia do Estado providenciador. É neste campo, numa verdadeira confirmação das leis de Wilson, que se torna mais visível o crescimento do Estado, desdobrado tentacularmente em estruturas, organismos públicos, instituições, direcções, programas, criando uma burocracia que, num perpétuo movimento de justificação da sua manutenção, cria novas dependências, novas necessidades, e reclama sistemática e inevitavelmente mais recursos. Estes “déspotas benovolentes” na expressão de J.M. Buchanan são os instrumentos de uma caridade colectivizada, “a socialised selfness giving” como Arthur Seldon descreveu sustentada no pressuposto de que apenas o Estado pode aliviar ou mesmo abolir a pobreza.1

Esta estatização da solidariedade radica em dois paradigmas: o da eficiência; e o da discricionariedade. O primeiro deriva da noção de que da profissionalização emerge necessariamente a eficiência. Um reflexo de uma concepção Webberiana do Estado e da administração pública, assente num contexto das novas exigências da cidadania de massas para as quais era necessário criar um aparelho burocrático que geriria áreas sociais fundamentais. Este modelo trouxe a presunção de que com os profissionais competentes e adequados e com os meios suficientes os problemas da sociedade desapareceriam. Uma expectativa infundada que teve um feito não desejado, bem denunciado por Nathan Glazer:

“ But aside of all these problems of expectations, cost, competency, limitations of knowledge, there is the simple reality that every piece of social policy substitutes for some traditional arrangement, whether good or bad, a new arrangement in which public authorities take over, at least in part, the role of the family, of the ethnic and neighborhood group, of voluntary associations. In doing so social policy weakens the position of these traditional agents and further encourage needy people to depend on the government for help rather than on traditional structures.”2

O segundo paradigma prende-se com o princípio da discricionariedade. Isto é, os defensores o sistema monopolista da solidariedade argumentam que só desta forma é garantida a neutralidade do sistema de solidariedade social, o que necessariamente implica uma preconceito de partida: as instituições intermédias espontâneas (onde se inclui a família) são tentadas a condicionar a e emitirem juízos de valor sobre os beneficiários da ajuda. Ou seja, a centralização e a standartização seriam as fórmulas eficazes para não permitir uma normatização do sistema. De facto, e tal como Raymond Plant identificou:

“No período pós-guerra, a social democracia…tem estado preocupada em assegurar aos cidadãos uma série de direitos… como atributos básicos de cidadania. Historicamente o sector do voluntariado não se tem preocupado com tais direitos. As suas raízes encontram-se na caridade e a questão essencial da caridade é que ela é discricionária.” 3

Repensar o EstadoAssume-se que a caridade, como virtude pessoal e dado subentender um quadro de valores morais eminentemente religiosos, revelaria uma incapacidade de ser generalizada socialmente e que por oposição a solidariedade, porque assente num princípio de incerteza e de interesse pessoal, pareceria ser passível de o alcançar. A ausência de um quadro moral sustentaria assim um pretenso princípio da neutralidade moral do Estado e, por essa via, a discricionariedade da solidariedade. Este é, no entanto, um falso dilema pois não só a neutralidade do Estado não se comprova, dado que pressupõe não só a existência do indivíduo ex nihilo, que não existe, como no acumular da experiência se verificou que nas causas de muitos dos problemas sociais detectamos sistematicamente uma deficiente transmissão intergeracional de quadros de valores.4

Os dois paradigmas sumariamente identificados parecem explicar em grande medida, em particular em sociedades que historicamente viveram grandes períodos de um paternalismo estatal seguidas de processos revolucionários em que se denotava nas propostas políticas subsequentes uma “ unanimidade em torno da intervenção do Estado”5 como a Portuguesa, a manutenção de um ambiente cultural favorável à presença e predomínio do Estado nos domínios sociais, com a sua tradução em excessos de expectativas e equivalentes frustrações na população.

O excesso de expectativa embate directamente com o simples facto, tantas vezes deliberadamente ignorado, de que o Estado efectivamente não consegue solucionar os problemas sociais. Não se trata meramente de o Estado ter insuficientes recursos, de disfuncionalidades, de má redistribuição (apesar de todas estas asserções serem verdadeiras). O Estado não consegue resolver os problemas porque efectivamente não pode. Porque na sua esmagadora maioria são problemas que para serem debelados envolvem dinâmicas junto dos indivíduos e dos círculos de proximidade. Porque, ao abrigo dos progressistas paradigmas da eficiência e neutralidade, o modelo de bem-estar instituído desprezou o papel das fórmulas de convivência espontâneas, e nesse processo erodiu-as.

Os apelos ao dinamismo da sociedade civil, à importância da família, ao retorno ao princípio da subsidiariedade, às políticas de proximidade no âmbito das políticas sociais, não são “actos de fé” mas sim propostas sustentadas pelos dados que a experiência acumulou. Esta avaliação do passado tem sido sistematicamente apresentada por académicos, técnicos e especialistas, e começa a ganhar terreno na opinião pública tendo tímidos ecos nas propostas políticas. Mais por contingências económicas do que por princípios ideológicos - a radicalização do discurso político que temos vindo a assistir em torno do “fim do estado social” é disso prova.

A realidade, nas suas dimensões demográficas, sociais, económicas e políticas, exige um redimensionamento do Estado no âmbito das suas funções e papel interventivo. Uma concepção reformista que tenha em linha de conta que hoje, na era da informação global, os cidadãos já não são uma massa inculta, desinteressada e abstémica e que portanto o modelo de administração pública instituído está desactualizado. Uma concepção reformista que ultrapasse o pressuposto da cidadania passiva para adoptar o da cidadania activa. Uma concepção reformista despreconceituada relativamente à origem da prestação de serviços. Uma concepção que induza também à responsabilidade de todos os envolvidos. É necessário, sobretudo nas políticas sociais, ultrapassar narrativas ideológicas e prudentemente, sustentada na experiência, nos modos de vida, pautar as políticas públicas de um processo de tentativa e erro que esteve sempre por detrás do verdadeiro progresso da sociedade.


1 Arthur Seldon, “The Idea of the Welfare State and its Consequences”, in S.N. Eisenstadt and Ora Ahimer, The Welfare State and its Aftermath (Barnes &Noble Books, New Jersey: 1985), pp 59-73,p. 68.
2 Nathan Glazer, The Limits of Social Policy ( Harvard University Press: 1988) p.7
3 Raymond Plant, “ Estado, Sociedade Civil e o Sector do Voluntariado”, in João Carlos Espada (org.), A Sociedade Civil e o Mercado ( IEP/Universidade Católica Editora, Lisboa: 2010), pp11-22, p.16.
4 Eugénia Gambôa, “Política e Bom-Senso: A ascensão e autonomização da temática da família no discurso político norte-americano”, Tese de Doutoramento, Universidade Católica Portuguesa, 2010.
5 Carlos Jalali, “ A Reforma na Gaveta? Partidos e cidadão perante a reforma do Estado em Portugal”, in José Manuel Moreira, Carlos Jalali, André Azevedo Alves (coorden), Estado, Sociedade Civil e Administração Pública (Almedina, Coimbra: 2008), pp 111-148, p. 135.

 


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