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História da Guerra do Peloponesco


História da Guerra do Peloponesco

Tucídides escreveu uma obra intemporal.

A tradução directa para português de História da Guerra do Peloponeso de Tucídides constitui um trabalho riquíssimo. A sua produção revela, além de enorme saber, uma grande coragem dos tradutores, também responsáveis pelas restantes partes que a compõem.

TucídidesHistória da Guerra do Peloponesco
Apresentaçaão da obra traduzida eplo Prof. Doutor Raúl Rosado Fernandes
Fundação Gulbenkian, 2010

POR NUNO VIEIRA MATIAS

Almirante. Professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Membro do conselho editorial de Nova Cidadania. História da Guerra do Peloponesco

Atradução directa para português de His- tória da Guerra do Peloponeso de Tucídides- constitui um trabalho riquíssimo. A sua produção revela, além de enorme saber, uma grande coragem dos tradutores, também responsáveis pelas restantes partes que a compõem.

É um livro valiosíssimo por se tratar da tradução directa do grego para o português de um clássico da história, da política e da estratégia, quando não das operações, com imensa importância actual.

De facto, Tucídides escreveu uma obra intemporal, como procurarei explicar, e isso seria o bastante para dar ao trabalho agora lançado uma enorme relevância. Mas o livro é também rico porque o Prof. Rosado Fernandes escreveu, além do prefácio, uma excelente e ampla introdução de 60 páginas que não só ajuda a interpretar o escrito de Tucídides, como o comenta de forma actual e perspicaz. Acresce ainda que a obra tem o estudo facilitado pela junção de um Glossário, muito claro e útil, de uma numerosa e bem sistematizada Bibliografia e de um excelente e exaustivo Índice Onomástico.

Também uma referência merece ser feita aos mapas que tanto auxiliam a entender as localizações referenciadas no texto e às excelentes gravuras, com especial realce para as das trirremes. Nestas, o arranjo posicional das bancadas dos remadores, o tamanho relativo dos remos em três níveis e os seus apoios nas toleteiras estão surpreendentemente bem definidos.

Passemos, então a falar da obra, do tesouro de Tucídides, que é posto à nossa disposição.

A Obra de Tucídides

A importância da obra de Tucídides poder-se-ia dizer que resulta da consideração geralmente feita de ele ter sido, de facto, o primeiro historiador, enquadrado pela classificação, pelo conceito que, nos nossos dias, atribuímos ao narrador de factos sociais, políticos, económicos, militares, etc., que influíram na vida de povos.

Tucídides é, na verdade, um historiador, quando se preocupa em “servir a verdade”, mais de que escrever o que as pessoas poderiam gostar de ler, ou quando procura informações junto das “mais seguras fontes” ou, ainda quando se esforça por transcrever discursos.

História da Guerra do Peloponesco Existe em todo o trabalho do escritor essa busca de fundamentação para as considerações que desenvolve, chegando ao interessante ponto de relatar um diálogo. Refiro-me àquele que foi travado entre a delegação que os estrategas atenienses Kleomedes e Tísias enviaram à ilha de Melos, antes de a atacarem, e os Mélios, propondo-lhes uma rendição.

É uma troca de argumentos, na primeira pessoa do plural, de 24 falas, com o sabor a quase reportagem directa, de um encontro de pessoas inteligentes, com uma intencionalidade política surpreendente.

Bastava esta característica de historiador pelos padrões actuais para fazer de Tucídides um autor indispensável e da sua obra História da Guerra do Peloponeso um documento impressionantemente valioso sobre a mais longa guerra até então travada – uma guerra de 27 anos. Já seria suficiente esta riqueza histórica, mas há outra que se extrai do longo texto e que, na minha apreciação, sobreleva até aquela. Por isso, não será propriamente sobre os aspectos históricos que me debruçarei, mas sim sobre uma segunda relevância.

Contudo, antes de o fazer, gastarei apenas um pouco da vossa atenção para falar sobre Tucídides.

Quem foi Tucídides?

Segundo os elementos algo vagos de que se dispõe o autor terá nascido entre 455 e 460 a.c. no seio de uma família de ricos aristocratas atenienses. Entre os seus ascendentes, indica-se o famoso general Mitíades e admite-se que, na infância, durante uns jogos olímpicos, terá ouvido a leitura feita por Heródoto da sua obra.

Já no decurso da guerra do Peloponeso, foi eleito estratega com a primeira missão de manter a ordem na zona de Thasos, na Trácia. Contudo, um ataque do general espartano Brásidas a Anfípolis obriga Tucídides a ir socorrer o seu colega Euclés, mas sem sucesso, uma vez que não evitou a queda da cidade.

Foi um esforço inglório que levou ao seu julgamento e condenação pelos atenienses. Como consequência da pena, esteve vinte anos deportado, regressando a Atenas em 404 a.c. Nesse período de tempo, entre 423 e 404 a.c. empenhou-se na recolha de elementos para a escrita da sua obra, deslocando-se em Itália e na Sicília. Dessa procura de dados concretos resultariam as descrições muito rigorosas de vários cenários de guerra.

Sabe-se pouco da vida do historiador, mas alguns biógrafos indicam que terá morrido de forma violenta entre 400 e 395 a.c. sem ter completado a sua obra. Os acontecimentos posteriores a 411 ficaram por descrever, mas as suas ideias podem ser claramente apreendidas da escrita objectiva que nos legou, onde os acontecimentos são bem destacados.

De realçar, contudo, que Tucídides é muito mais do que um narrador de factos. É um historiador que correlaciona inteligentemente causas e efeitos, dando-lhes a adequada sequência temporal. É nesta linha que reconstitui e analisa os discursos para construir as suas reflexões sobre os pontos de vista de oradores como, por exemplo, Péricles, Nícias, Alcibíades, etc.

Feito este rápido bosquejo de alguns aspectos da vida de Tucídides, volto à importância da obra, mas para abordar a segunda componente do seu interesse. De facto, “História da Guerra do Peloponeso” começa por ser isso mesmo – uma história de um longo conflito – mas constitui também uma excelente fonte de elementos para o estudo do comportamento humano, nas suas múltiplas facetas, nos mais diversos quadros da situação.

Esta é uma vertente magnificamente explorada na ampla e excelente introdução que o Prof. Rosado Fernandes escreveu para a sua tradução.

História da Guerra do Peloponesco História da Guerra do Peloponeso começa por ser isso mesmo – uma história de um longo conflito – mas constitui também uma excelente fonte de elementos para o estudo do comportamento humano, nas suas múltiplas facetas, nos mais diversos quadros da situação

A «sociedade política», ironiza Burke, é uma construção artificial e maligna, directamente responsável pelas maiores calamidades que se abateram sobre a espécie humana. Tal como no Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, que Rousseau publicara, sintomaticamente, dois anos antes, a «sociedade natural» seria o contraponto purificante e purificado da óbvia corrupção e decadência em que os homens haviam mergulhado. E conclui Burke, em tom de paródia:

História da Guerra do Peloponesco Em todos os 17 sub-títulos introdutórios faz paralelismos históricos com situações muito distantes no tempo, posterior, mas que provam uma impressionante constância na forma de reagir dos homens e das suas sociedades. Na verdade, essa introdução começa por comentar em a “Mentalidade e a razão” que a obra de Tucídides “que é o exemplo de outra forma de pensar e de ver a realidade, representa frente ao passado, sem dúvida, o resultado da profunda transformação no pensamento helénico, que vai continuar com frequentes interrupções nos séculos seguintes na constituição do pensamento ocidental”.

Depois, em sub-títulos como “Análise das reacções humanas”, “A orgia revolucionária”, “O genocídio e a crueldade humana”, o “Orçamento de guerra”, para citar apenas alguns exemplos, surgem frequentes e finas referências a repetições históricas de reacções humanas e de fenómenos sociais que, apesar de separadas por séculos ou mesmo milénios, têm uma nítida semelhança que lhes é transmitida pelo fio condutor da mente humana.

Casos como o das barbaridades perpetradas pelos Trácios em Micalesso e que mereceu uma apreciação crítica do historiador e o dos massacres dos Mélios, depois do ultimato feito pelos Atenienses, em que foram chacinados todos os humanos, mulheres e crianças incluídas, tiveram infelizes repetições idênticas ao longo dos tempos, e mesmo nos nossos dias, como no Vietname, ou no Cambodja.

A megalomania e a juventude de Alcíbiades que levaram à ruinosa campanha da Sicília têm semelhanças em D. Sebastião e no desastre de Alcácer Quibir.

Também a traição de Pausânias e de Temístocles, “um Espartano, o outro Ateniense, homens respeitados pelo seu passado e sua carreira como cidadãos em armas demonstra uma actividade intemporal que nos cativa e causa a maior surpresa.” Trata-se de uma atitude que se repete pelos tempos fora com diversas invocadas justificações e que até Camões a ela se refere no Canto IV, Estância 33, e cito “Dizei-lhes que também dos Portugueses/ alguns treidores houve algumas vezes”.

Depois de Camões, e agora a opinião é minha, essa perversidade também voltou a acontecer. Relembro que, enquanto eu combatia na Guiné como Fuzileiro Especial, se ouvia numa rádio em Argel vozes de seres nascidos em Portugal incentivando à traição e à maior eficácia do inimigo contra os seus conterrâneos. Depois, tal como Alcibíades e o seu jogo triplo com Espartanos, Atenienses e Persas, também há hoje desses quem queira agora dominar o povo que tanto prejudicou.

Estes são apenas três exemplos dos inúmeros que o Prof. Rosado Fernandes salienta e inteligentemente descreve na, repito, riquíssima introdução à obra que traduziu. Mesmo assim, e apesar desse longo elenco de casos paralelos, o nosso Professor, ao terminar as suas 60 páginas introdutórias, ainda escreve, e cito:

 

“Muitos são os pormenores que poderiam ter sido focados. O nosso interesse, porém, residiu em chamar a atenção do leitor moderno para a intemporalidade da análise do fenómeno humano já com dois mil e quinhentos anos, ao mesmo tempo que escolhemos algumas fontes da Antiguidade para dar a conhecer, contrariamente ao que seria de esperar, uma análise mais técnica e utilitária do que a por nós feita já no século XXI.”

Esta referência aos “pormenores que poderiam ter sido focados”, também a desvanecedora dedicatória às Forças Armadas Portuguesas, levam-me a tecer mais alguns comentários sobre o interesse do escrito de Tucídides no âmbito da relação entre política e estratégia.

É que, de facto, este livro constitui uma referência, em muitas escolas superiores militares, nomeadamente no Naval War College, dos EUA, onde é atentamente estudado, enquanto peça essencial à aprendizagem da construção de raciocínios estratégicos.

Na verdade, a guerra do Peloponeso, apesar de ter ocorrido durante a Antiguidade Grega, permanece actual para a análise estratégica e no ensino do emprego de todos os instrumentos do poder nacional para atingir os objectivos estratégicos definidos pela política.

Para mais, tratou-se de um conflito que opôs uma potência marítima e democrática, que era Atenas, a uma potência autocrática, militarista e continental (terrestre), Esparta (ou Lacedémon). (Eram os Jónios da Liga de Delos a defrontar os Dórios da Liga do Peloponeso).

É curioso que a perenidade do interesse do tema foi prevista, pelo próprio Tucídides, ao considerar que a sua história seria para “todos os tempos”. Escreveu mesmo que todas as guerras se parecerão com esta uma vez que a natureza humana permanecerá a mesma. Por isso, considerou que, especificamente, esta guerra constituía um microcosmo para todas as guerras. Que quem tivesse visto essa guerra teria visto qualquer coisa que permaneceria em todas as outras.

História da Guerra do Peloponesco Quem entender este conflito poderá entender as questões invariáveis de política e de estratégia em maior profundidade e extensão do que se tivesse lido uma biblioteca inteira

Por isso, quem entender este conflito poderá entender as questões invariáveis de política e de estratégia em maior profundidade e extensão do que se tivesse lido uma biblioteca inteira.

De facto, Tucídides fornece-nos arquétipos ou modelos para os problemas recorrentemente tratados em política e estratégia, que podemos elencar numa longa lista, nomeadamente: a liderança estratégica; a segurança interna; os dilacerantes efeitos de uma catástrofe biológica na sociedade e na política (a peste); a decisão de lançar operações conjuntas e combinadas; a procura do apoio interno e internacional para uma guerra prolongada; a confrontação com um inimigo com capacidades assimétricas; o controlo do mar; a avaliação de um inimigo de uma cultura radicalmente diferente; o impacto de uma intervenção estrangeira numa guerra a decorrer; o uso de processos revolucionários para minar um governo ou alianças; os constrangimentos e as oportunidades conferidos pela posição geopolítica; a difícil dúvida ética inerente ao uso da violência para atingir fins políticos, etc.

Podíamos ainda encontrar, por exemplo, modelos para os problemas únicos dos factores de força e de fraqueza das democracias em guerra.

São questões como estas que, se estiverem presentes na mente dos leitores de Tucídides, os poderão levar a julgar, a avaliar, as decisões dos líderes envolvidos e a pensar se, ou como, poderia ter sido feito melhor. Este é o tipo de exercício intelectual político-estratégico que a obra de que estamos a tratar excelentemente nos permite, mas que, para além disso, nos pode fornecer um hábito de raciocínio aplicável ao estudo das guerras mais recentes e, até, à avaliação do quadro internacional dos nossos dias.

Este rasgado elogio de Tucídides poderá fazer-nos interrogar sobre as suas diferenças com outros igualmente considerados estrategistas, como Clausewitz ou Sun Tzu. De facto, enquanto estes nos apresentam os elementos essenciais da teoria estratégica, Tucídides constitui uma escola com lições da experiência, onde os choques violentos nos convidam a compreender como é que uma grande democracia, em muitos aspectos semelhantes às democracias ocidentais dos nossos dias, perdeu a guerra e, consequentemente, o seu modo de vida livre, em confronto com o duro rival autocrático.

Por isso, o estudo desta obra, para mais disponível numa excelente tradução directa, é muito importante. Vital mesmo. É que, se não entendermos as forças e fraquezas estratégicas da antiga democracia ateniense, poderemos não compreender a nossa democracia ocidental e ficarmos condenados a seguir os passos da antiga Atenas. É preciso aprender com o exemplo de Atenas as vantagens das democracias actuais, sem cometer os erros que a derrotaram.

A protecção conferida pelas muralhas de Atenas, o domínio do mar e o grande número de cidades gregas afectas a Atenas, assim como a força moral dos atenienses estimulada por Péricles constituíam factores de poder que poderiam ter levado Atenas a uma vitória nítida.

Tucídides revela-nos, claramente, como a paixão pode, de forma grave, conduzir, ameaçar, a perda do controlo racional em tempo de guerra, com consequências fatais para a política e para a estratégia. É uma aproximação que Clausewitz e Sun Tzu também fazem por outro ângulo, ao encorajarem o uso de calculismo racional quando estão em jogo os interesses do Estado.

Tucídides também vai além de Clausewitz e de Sun Tzu quando enfatiza a ideia de que não é possível compreender estratégia ou política sem olhar criticamente para os políticos que lhes dão forma.

História da Guerra do Peloponesco O Historiador faz uma tal avaliação das qualidades da democracia e do poder democrático, ao descrever a oração imperial de Péricles de elogio aos mortos, que não houve milénios que a desactualizassem

Por isso, Tucídides enquanto se preocupa em descrever o decorrer das batalhas, também nos leva a olhar para os discursos políticos e para os debates, entre diferentes líderes (Archidomus, Péricles, Cleon, Demóstenes, Brásidas, Nícias, Alcibíades, etc.) em competição pelo poder para formularem políticas, definirem estratégias e executarem operações como comandantes em teatros distantes.

Os objectivos dos beligerantes e as estratégias que escolhem para os atingir não são muito evidentes em nenhuma fase da guerra. De facto, os líderes das diferentes cidades, nas descrições de Tucídides, frequentemente usam mentiras ou só revelam parte do que têm em mente. Ressalta claro na obra em apreço, que a estratégia é, na guerra do Peloponeso, muito claramente, a continuação da política, com os comandos militares muitas vezes divididos, de acordo com o equilíbrio das facções políticas domésticas, e com as relações entre autoridades políticas e militares a demonstrarem ser frequentemente decisivas no êxito, ou no falhanço das campanhas. Foi o que se passou especificamente quando estiveram envolvidos Brásidas, o comandante espartano e Alcibíades e Nícias, comandantes atenienses.

Em suma, e para não me alongar mais nos comentários de natureza estratégica a esta fascinante obra de Tucídides, digo que o longo escrito deste historiador, ao descrever-nos a ascensão e a queda da mais famosa democracia do Ocidente constitui um ponto de partida essencial para a compreensão dos problemas que as nossas democracias ocidentais podem ter de experimentar numa guerra dos nossos dias.

E, sublinho, ao terminar, que o Historiador faz uma tal avaliação das qualidades da democracia e do poder democrático, ao descrever a oração imperial de Péricles de elogio aos mortos, que não houve milénios que a desactualizassem. Vale a pena, por isso, ler-vos umas linhas muito sábias de Tucídides, que bem podiam ser dirigidas aos portugueses de hoje (Livro II, XXXVII):

 

“Temos uma forma de governo….chama-se democracia, não só porque é gerida segundo os interesses não de poucos, mas da maioria, e também porque, segundo as leis, no que respeita a disputas individuais, todos os cidadãos são iguais; no que respeita a prestígio pessoal, quando alguém se distingue em alguma coisa, não é preferido para honras públicas mais por posição de classe do que por mérito; por um lado, no que respeita a falta de riqueza pessoal, o cidadão que tem aptidão para servir a cidade nunca, por causa da sua condição humilde, é impedido de alcançar a dignidade merecida.”

Estude-se, pois, este valioso livro e muitos erros poderão ser evitados.

Renovo as minhas felicitações ao Senhor Professor Doutor Raúl Rosado Fernandes, à sua colaboradora Senhora Doutora Maria Gabriela Palma Granwehr pela obra produzida e também à Fundação Calouste Gulbenkian pelo alto sentido cívico demonstrado ao assumir a edição do livro.

Por fim, e como antigo militar marinheiro, expresso os meus sentidos agradecimentos pela dedicatória às “Forças Armadas Portuguesas”. Bem hajam.


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