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Defesa da Sociedade Natural


Defesa da Sociedade Natural

No interior da História do Pensamento Político existe aquilo a que se convencionou chamar «o problema de Edmund Burke». Em termos necessariamente simples, o problema consiste em saber se Burke, como parlamentar e pensador, revela uma coerência teórica ao longo da sua vida pública; ou se, pelo contrário, Burke seria um mero «utilitarista», que apenas reagia aos acontecimentos sem nenhum tipo de preocupação transtemporal e transespacial...

Edmund Burke
Defesa da Sociedade Natural

Temas & Debate

POR JOÃO PEREIRA COUTINHO

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica PortuguesaDefesa da Sociedade Natural

Esta questão, que tem consumido a bibliografia especializada há quase dois séculos, e que divide os «burkeanos» em «naturalistas» e «utilitaristas», atinge o seu ponto máximo quando falamos de Reflections on the Revolution in France (1790), o poderoso libelo contra a Revolução Francesa e que inaugurou, pelo menos na cultura anglo-saxónica, uma tradição  conservadora moderna. Condenando a Revolução de 1789, estaria Burke a negar a sua reconhecida paixão pela liberdade, aplicada na defesa dos católicos irlandeses, dos nativos da Índia e, sobretudo, dos colonos da América face às exigências fiscais da Metrópole?

Joseph Priestley, numa da suas cartas a Burke (ou, melhor dizendo, contra Burke) é apenas um dos representantes da «escola da contradição»: o que perturbava Priestley, um admirador antigo e confesso de Burke, era ver o Mestre a condenar a Revolução Francesa e, por via disso, a negar, ou a renegar, todo o seu passado político.1

Dito de outra forma: ler e estudar Burke implica sempre enfrentar o problema dos «dois Burkes», tal como Gertrude Himmelfarb o definiu: «o Burke pró-americano e o Burke anti-francês»2. O primeiro, capaz de exibir as virtudes moderadas do seu Speech on Conciliation - «liberdade, compromisso, tolerância religiosa»; e o segundo, as virtudes «radicais» da trilogia «autoridade, tradição e instituição religiosa »3. Será possível sustentar, e como diria John Morley,que o revolucionário de 1770 se transformou num reaccionário em 1790?4

O objectivo deste texto não é responder à presente questão, embora fosse sempre possível resumir essa longa resposta num único articulado: Burke nunca foi um revolucionário e, inversamente, será difícil ver no Burke tardio a figura de um reaccionário.

Burke, como qualquer pensador maior, apresenta uma evolução no seu pensamento; mas essa evolução não se faz por corte ou negação com posições passadas; faz-se na continuidade destas. E uma análise detalhada dos seus textos sobre a América, a Irlanda e a Índia mostra, com impressionante acuidade, uma concepção da natureza humana e da segunda natureza humana (aquela que as tradições, os valores e as instituições de uma sociedade particular acabam por moldar) que revela um único Burke: um Burke sempre atento aos abusos do racionalismo e um apologista incansável da «política de cepticismo», para usar a famosa expressão de Michael Oakeshott.

É neste contexto que deve ser lida a sua Defesa da Sociedade Natural, finalmente publicada entre nós em colecção organizada e dirigida por Diogo Pires Aurélio e com tradução, introdução e notas de Pedro Santos Maia. À primeira vista, poder-se-ia pensar que a Defesa, sendo um texto de juventude, como texto de juventude deveria continuar. Há até quem afirme, em posição audaz e francamente insustentável, que a juvenilia burkeana não tem grande importância para compreender o pensamento posterior (e amadurecido) do autor.5

Uma leitura da Defesa da Sociedade Natural desmonta esta tese. Ao parodiar, em linguagem irónica, o deísmo e o radicalismo político de Henry St. John, Visconde de Bolingbroke, Burke estava, na verdade, a lançar as sementes do seu poderoso anti-racionalismo, que conheceriam nas Reflections a sua expressão mais apurada.

Na Defesa, esse anti-racionalismo encontrase na forma paródica como Burke aplica à «sociedade política» o mesmo tipo de «desconstrução» que Bolingbroke ministrara à religião instituída: se, como Bolingbroke pretendera, era possível mostrar a superioridade da «religião natural» sobre qualquer credo estabelecido, seria também legítimo, por um processo de reductio ad absurdum que mais não é do que um processo de racionalismo extremo, mostrar a superioridade da «sociedade natural» por oposição à«sociedade política», que a razão rapidamente desmascara como intolerável e opressiva. A «sociedade natural» poderia não ser  exactamente o estado de perfeição que encontramos nas caricaturas rousseaunianas; mas era um estado pacífico, ou pelo menos benigno, que os homens acabaram por destruir nessa «insaciável busca por mais».6

Um Burke sempre atento aos abusos do racionalismo e um apologista incansável da «política de cepticismo», para usar a famosa expressão de  Michael Oakeshotts.

A «sociedade política», ironiza Burke, é uma construção artificial e maligna, directamente responsável pelas maiores calamidades que se abateram sobre a espécie humana. Tal como no Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, que Rousseau publicara, sintomaticamente, dois anos antes, a «sociedade natural» seria o contraponto purificante e purificado da óbvia corrupção e decadência em que os homens haviam mergulhado. E conclui Burke, em tom de paródia:

 “É uma verdade incontestável que existe mais destruição feita pelos homens entre si, num ano, do que a provocada por todos os leões, tigres, panteras, onças, leopardos, hienas, rinocerontes, elefantes, ursos e lobos, sobre as suas várias espécies, desde o princípio do mundo; e isto embora aquelas feras se dêem mal umas com as outras e possuam, pela sua constituição, uma muito maior proporção de raiva e violência do que nós.”7

“É precisamente esta disposição, violenta e criminosa, motivada pelo facto do Homem ter preferido organizar-se politicamente, que fez com que «a maior parte dos governos sobre a Terra são tiranias, imposturas, violações dos direitos naturais dos homens, e piores do que as mais desordenadas anarquias.”8

Palavras fortes, sem dúvida. Tão fortes que, na segunda edição da obra, em 1757, o jovem autor entendeu por bem incluir um exórdio destinado a explicar o tom (irónico) e o sentido (inverso) do seu brilhante tratado. Para Burke, o que interessara na Defesa da Sociedade Natural não era defender uma presuntiva superioridade desta sobre a «sociedade política» estabelecida; pelo contrário, interessaria, antes, mostrar como «esses mesmos instrumentos que eram usados para a destruição da religião podem ser empregues com igual sucesso para a subversão do governo.»9

A posição de Burke afigura-se, em suma, como uma apologia da sensibilidade política prudente: uma sensibilidade sempre atenta aos «abusos da razão»10 e interessada em lembrar aos homens, e sobretudo aos agentes políticos, que «não podemos caminhar com firmeza sem nos darmos conta da nossa cegueira.»11 Estas palavras foram escritas em 1757. Seriam repetidas, implícita ou explicitamente, em 1790.


NOTAS
1 Priestley,Letters to Burke, iv. ;
2 Himmelfarb, Roads to Modernity, 84. ;
3 Ibid. ;
4 Morley, Edmund Burke, 54. ;
5 Cf. O’Gorman, Edmund Burke, 18. ;
6 Burke, Defesa da Sociedade Natural, 68. ;
7 Ibid., 84. ;
8 Ibid., 91. ;
9Ibid., 63. ;
10 Ibid., 65. ;
11 Ibid., 64.


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