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A NATO, Lisboa e o Futuro


 

A Aliança Transatlântica é relevante porque é responsável por proteger e garantir o modo de vida livre e democrático e a segurança e a estabilidade dos 900 milhões de habitantes dos 28 países aliados.

 

POR LÍVIA FRANCO

Professora do IEP-UCP

A NATO, Lisboa e o Futuro“A NATO não é um clube de debate, a NATO é um actor internacional efectivo” afirmou Stefanie Babst, directora-adjunta do secretário-geral da NATO para a Diplomacia Pública, na intervenção que proferiu no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica a 21 de Maio passado. Apenas quatro dias depois da tão esperada publicação do relatório do painel de especialistas sobre o novo conceito estratégico da Aliança Atlântica, a reputada funcionária sénior desta organização internacional reuniu uma assistência variada de diplomatas, académicos, militares e estudantes num concorrido almoço-palestra para uma reflexão acerca dos novos desafios estratégicos e da próxima Cimeira NATO que terá lugar em Lisboa a 19 e 20 de Novembro próximo. Com esta afirmação Stefanie Babst quer não só sublinhar um facto indesmentível que é muitas vezes menorizado, como fazer eco de uma preocupação que tem pautado o discurso do actual Secretário- Geral daquela organização: a relevância muito concreta que a NATO tem na política internacional e, especialmente, na vida dos povos aliados. Falando em Fevereiro aos estudantes da prestigiada Universidade de Georgetown, Anders Fogh Rasmussen não podia ter sido mais sucinto e claro ao explicar aos seus jovens ouvintes que a Aliança Transatlântica é relevante porque é responsável por proteger e garantir o modo de vida livre e democrático e a segurança e a estabilidade dos 900 milhões de habitantes dos 28 países aliados. O que, convenhamos, não é tarefa de somenos numa era que tem por traços principais a incerteza e a volatilidade.

Esta tem sido a missão essencial da Aliança nos seus 61 anos de vida. Criada a 4 de Abril de 1949 pela assinatura do Tratado de Washington por 12 países (10 europeus e dois norte-americanos), a NATO tem actualmente 28 países aliados, incluindo cinco que são antigos membros da aliança colectiva que durante mais de 35 anos foi a sua rival directa, o Pacto de Varsóvia, e três que eram parte integrante da superpotência inimiga, a URSS. E, no entanto, as palavras proferidas pelo presidente Harry Truman naquela data inaugural continuam a ser inteiramente válidas nos nossos dias: “Com este pacto esperamos criar um escudo contra a agressão e o medo da agressão – uma barreira que nos permita continuar a actividade efectiva do governo e da sociedade, o propósito de alcançar vidas mais cheias e felizes para os nossos cidadãos.” Tratase, contudo, de uma missão que exige uma constante adequação à própria realidade internacional, adequação essa que, antes de se concretizar a nível operacional, deve consubstanciar-se primeiro a nível do pensamento estratégico e das prioridades da Aliança. É neste domínio que o Conceito Estratégico surge como documento fundamental da NATO, situando-se em termos de importância política imediatamente a seguir ao Tratado de Washington.

Um processo diferente

Iniciado na Cimeira de Estrasburgo-Kehl, que celebrou o 60º aniversário da Aliança, o processo de elaboração do novo conceito estratégico terminará na Cimeira que vai reunir em Lisboa os chefes de Estado e de governo dos 28 países aliados. Caberá nessa altura ao Conselho do Atlântico Norte como principal órgão decisor da organização a aprovação por consenso daquele que será o documento de orientação estratégica para a Aliança na próxima década, e que partirá de uma proposta base elaborada pelo Secretário-Geral.

Analisando o modo como tem decorrido o actual processo de revisão estratégica, três elementos merecem destaque: o primeiro elemento traduz-se na confirmação prática da regra não escrita de que as revisões estratégicas se realizam em intervalos de dez anos. O segundo elemento é também uma confirmação já anunciada, a da publicação e do acesso público generalizado do novo documento estratégico assim que ele seja aprovado. Trata-se de uma prática importante sobretudo numa Aliança entre democracias, como é o caso da NATO, mas que era inexistente durante a guerra fria, época em que esses documentos fundamentais eram classificados. Finalmente, o terceiro elemento, radicalmente novo porque acontece pela primeira vez na história da Aliança, diz respeito à externalização de uma parte substancial do próprio processo de elaboração do novo documento estratégico, que deixa assim de ser totalmente interno à NATO. Pretende-se assim, nas palavras do próprio Secretário-Geral, que o processo de revisão seja transparente, inclusivo e muito participado.

O processo agora em desenvolvimento inclui três fases distintas: uma fase de reflexão já concluída, uma fase de consultas a nível governamental e parlamentar aos aliados e aos parceiros NATO, que ainda decorre e que terminará com a elaboração do texto a apresentar em Lisboa, e, por fim, uma fase de negociações finais a concretizar depois do Verão. Tanto a redacção do rascunho a aprovar como as negociações finais serão da responsabilidade exclusiva do Secretário- Geral Rasmussen e do seu staff mais próximo. Da fase concretizada resultou, entretanto, a organização de uma série de seminários em países diferentes e de contactos com vários especialistas e académicos prestigiados, bem como com funcionários da NATO, tanto civis como militares, sobre temáticas específicas e complementares. Entre os aspectos abordados destacam-se a (in)definição do presente contexto estratégico, as funções e tarefas vitais da Aliança, o seu alargamento e as suas parcerias, as suas forças e as suas capacidades. Estas várias iniciativas produziram uma reflexão vasta e pertinente que foi enquadrada pelo trabalho do Grupo Albright. Presidido pela antiga secretária de Estado norte-americana, o grupo era constituído por mais 11 especialistas, com cargos profissionais e perspectivas diversas, todos originários de países aliados mas colaborando a título pessoal. Depois de nove meses em funções, o grupo publicou a 17 de Maio o seu mais ansiado contributo para o processo em curso – um relatório intitulado NATO 2020. Segurança garantida; Compromisso dinâmico (Análises e recomendações do grupo de especialistas sobre um novo conceito estratégico para a NATO). Reconhecendo ser este o momento certo para o desenvolvimento de um olhar novo sobre as missões, os procedimentos e os planos da Aliança, o relatório inclui, tal como o próprio nome indica, um conjunto de análises e recomendações com vista a auxiliar o Secretário-Geral na elaboração do documento estratégico a aprovar.

O novo conceito estratégico

Os conceitos estratégicos de 1991 e de 1999 vieram adequar a NATO aos desafios colocados pelo pós-guerra fria. Ao oficializar que a URSS e o Pacto de Varsóvia já não eram inimigos da NATO, o primeiro documento veio consagrar medidas capitais tendo em vista os grandes desafios que então se colocavam: a integração na própria estrutura transatlântica dos Estados do Leste europeu que reunissem as condições para tal e a prevenção e contenção das novas situações de instabilidade e tensões com destaque para a proliferação de armas nucleares, os conflitos nacionalistas e étnicos, o terrorismo e a sabotagem, o descontrolo dos movimentos migratórios, etc. Relegava assim para um plano inferior a possibilidade de um clássico confronto militar em larga escala, ao mesmo tempo que consagrava uma substancial alteração no sentido que até aí é dado à noção de segurança: esta deixa de estar apenas enformada por considerações de defesa convencional para passar a incluir cada vez mais apreciações de natureza político-económica, social e ambiental. Quanto ao conceito estratégico de 1999, de menor fôlego e projecção, vai traduzir-se numa reactualização e num complemento do documento antecessor. Não obstante, e mantendo no essencial a concepção alargada sobre a segurança, vai insistir em dois pontos importantes: por um lado, no carácter multidimensional e de forte imprevisibilidade das novas ameaças (militares e não militares); por outro, na necessidade das capacidades militares da Aliança se manterem ao nível dos desafios a enfrentar e das missões a realizar.

O novo conceito estratégico deve ser capaz de dizer à NATO o que se passa com o mundo – ou pelo menos com a área euro-atlântica no mundo – e, por sua vez, o que o mundo pode e deve realisticamente esperar da NATO.

Todavia, enquanto estas revisões estratégicas se iam operacionalizando, o contexto internacional continuava em acelerada transformação. Os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 em solo norte-americano e os acontecimentos associados que se lhes seguiram, incluindo os ataques adicionais em Madrid (2004) e Londres (2005), obrigaram rapidamente a reequacionar o peso e a extensão da solidariedade transatlântica. É verdade que os ataques de 2001 são responsáveis pela única invocação na longa história da aliança da famosa cláusula de assistência mútua consagrada no artigo 5º do Tratado de Washington. Porém, os subsequentes desenvolvimentos que culminaram nas intervenções no Iraque e no Afeganistão vieram demonstrar que, afinal, não só havia um profundo fosso político entre os aliados como também um enorme desajustamento das capacidades da Aliança face aos desafios decorrentes desse contexto estratégico em mutação. Visando relembrar que o conceito de 1999 continuava em vigor e ao mesmo tempo reforçar as suas orientações políticas estruturantes, a NATO aprova em 2006 o Comprehensive Political Guidance. Este afirma que, tal como acontecera no 11 de Setembro, futuros ataques aos países aliados poderiam vir do exterior da área euro-atlântica, usarem meios assimétricos e armas de destruição maciça. E, consequentemente, insiste na necessidade da Aliança estar apta a responder aos desafios que se lhe colocam, independentemente da sua origem, legitimando assim as missões fora de área, que já eram prática desde 2003 com a assumpção por parte da NATO do comando da ISAF no Afeganistão.

Chegados a 2010 a tarefa de revisão estratégica é, por um lado, e em muitos aspectos, semelhante às realizadas nas duas décadas anteriores. Precisa, por exemplo, de olhar para o contexto geral em que se insere e compreender as suas características e principais tendências evolutivas. Precisa igualmente de olhar para si própria para reforçar as suas vantagens e, reconhecendo igualmente os seus limites, decidir as suas missões e as capacidades que deve possuir. Mas, por outro lado, a presente tarefa de revisão também deverá ser substancialmente diferente e, com muita probabilidade, será substancialmente mais difícil do que as anteriores. Por várias razões. Do ponto de vista externo, a tarefa não será facilitada por uma realidade internacional que é cada vez mais multidimensional, continuará em constante mudança e conterá uma cada vez maior diversidade de intervenientes, estatais e não estatais, com interesses, agendas e regras diferentes. Nas décadas que se avizinham, as relações internacionais serão marcadas acima de tudo pela assimetria entre esses diferentes elementos, donde resultará uma (des)ordem global que deverá ser gerida pelo recurso a diferentes tipos de poder – hard, soft e smart power – nas suas mais variadas formas e num contexto de grande difusão. Quanto à dimensão interna, são também vários os elementos que tenderão a dificultar o processo. A dificuldade mais evidente encontra-se no facto da aprovação do novo conceito depender agora de 28 decisores quando na última vez dependia apenas de 19. Além disso, a Aliança está envolvida naquela que é, até à data, a sua maior missão militar (em tamanho e complexidade), no Afeganistão, isto é, num território fora da sua área de intervenção tradicional. Finalmente, a grave crise económica que no último ano e meio assolou os países aliados tenderá a colocar ainda mais pressão sobre as várias questões a decidir.

Tudo isto somado resulta na constatação de que o novo conceito estratégico tem de ser muito mais do que um menu de respostas avulsas ou do que uma definição abrangente do novo rumo da Aliança. Para verdadeiramente conseguir dar solução aos seus desafios internos e àqueles que lhe são colocados pelo contexto global em mutação acelerada, o novo documento estratégico tem necessariamente de trazer consigo uma narrativa inteligível e completa sobre a realidade em que a Aliança é suposta operar. Por outras palavras, o novo conceito estratégico deve ser capaz de dizer à NATO o que se passa com o mundo – ou pelo menos com a área euro-atlântica no mundo – e, por sua vez, o que o mundo pode e deve realisticamente esperar da NATO. E, por isso mesmo, tem de ser ainda, como diz o Relatório Albright, um acto de invocação da vontade política dos aliados, ou dito de outro modo, uma renovação de votos da Aliança.

Os temas que dividem

Neste debate alargado sobre o novo pensamento estratégico da Aliança transatlântica, quais são afinal os temas mais geradores de controvérsia? São-no todos aqueles sobre os quais não existe uma percepção comum entre os aliados. Tal falta de partilha de perspectiva está normalmente associada a duas linhas fracturantes principais: a mais manifesta é a que divide os antigos e os novos Estados membros da NATO, e a mais constante, a que separa os EUA e os aliados europeus. Entre os temas que mais têm dividido a Aliança e sobre os quais vai ser difícil chegar a consenso na Cimeira de Lisboa, destacam-se os seguintes: o Afeganistão, as relações NATORússia e a política da porta aberta. Evidentemente, os três temas são objecto de análises desenvolvidas e de inúmeras recomendações no Relatório dos Especialistas. Todos eles foram também abordados por Stefanie Babst na sua intervenção no IEP. Em ambos os casos os pontos de vista levantados são muito próximos.

Aos 61 anos, a NATO prepara-se para enfrentar mais uma década da sua já longa história. Uma história que no século XXI terá de ser marcada por uma grande versatilidade, uma sólida sensatez na aplicação dos seus recursos e, principalmente, uma enorme lucidez na defesa daquele que continua a ser o seu valor central: a liberdade

No que toca ao Afeganistão, existe uma postura unânime de que a experiência da NATO nesta missão sirva sobretudo como fonte pródiga de lições a retirar: lições sobre a necessária coesão e solidariedade entre os aliados, o desejo de uma estrutura de comando unificada, o planeamento efectivo e antecipado e acerca da necessidade de calibrar melhor o comprehensive approach. Todos estes problemas têm sido objecto de desentendimento entre os vários aliados no terreno e o custo principal, há que dizê-lo, tem recaído sobre os EUA. Mas aqui, os especialistas vão ainda mais longe e propõem que a experiência no Afeganistão sirva também de base para a formulação de orientações concretas que contribuam para futuras deliberações (sempre casuísticas) relativas a outras eventuais missões fora de área. Entre essas orientações devem contar-se a extensão e a iminência do perigo para os aliados; o esgotamento ou a aparente ineficácia de medidas alternativas; a vontade e a capacidade dos aliados fornecerem os meios necessários ao sucesso da missão; o envolvimento de outros parceiros; as possíveis consequências da não intervenção, bem como outras.

Quanto à Rússia, depois do optimismo dos anos 90 a década que se seguiu foi marcada por várias divergências que contribuíram para a sucessiva deterioração das suas relações com os parceiros transatlânticos: a guerra do Iraque, o apoio ocidental à Revolução Laranja na Ucrânia, a escalada dos preços dos recursos energéticos e a ameaça do corte de fornecimento desses mesmos recursos a certos países da NATO, a anunciada implementação de um sistema norte-americano de defesa anti-míssil na Polónia e na República Checa (entretanto abandonado), diversos acidentes diplomáticos com o Reino Unido e a guerra com a Geórgia foram apenas alguns desses incidentes. O impacto deste desgaste sobre a política de segurança e defesa russa é de tal ordem que a nova doutrina militar daquele país, publicada no passado mês de Fevereiro, passou a incluir na sua lista de ameaças a NATO e mais particularmente a sua política de expansão. Esta degradação das relações NATO-Rússia tem provocado um intenso descontentamento e uma acrescida desconfiança junto dos antigos países comunistas da Europa Oriental e Central que são os membros mais recentes da Aliança. Nesse sentido, é com evidente renitência que estes novos aliados perspectivam um certo esforço da própria organização de normalização das relações e até cooperação com a Rússia. Já a política da porta aberta diz respeito à possibilidade da Aliança se continuar a alargar a novos membros, tal como estabelecido no art. 10º do Tratado de Washington. Ironicamente, não é apenas a Rússia que deseja pôr um travão a essa política. Muitos dos velhos aliados estão preocupados com os efeitos indesejados e não intencionados do contínuo alargamento da NATO, estando por isso longe de a considerar uma tarefa prioritária. E aqui situam-se bem longe dos novos países aliados que têm uma opinião diametralmente oposta. Há cerca de dois anos, nenhuma outra questão mostrava tão claramente esta diferença de perspectivas como a questão do eventual alargamento da Aliança à Geórgia e à Ucrânia. De um lado, sob os auspícios de uma administração norte-americana em evidente rota de colisão com Moscovo, os novos membros da NATO defendiam uma adesão rápida, justificada no inquestionável princípio de que todo o Estado soberano tem o direito de participar livremente nos compromissos internacionais da sua escolha. Do outro lado, a Alemanha, a França, a Itália e a Espanha, mostravam publicamente a sua preferência por um processo de adesão lento e prudente. É verdade que a cerimónia de encerramento da Cimeira de Bucareste em 2008 declarava oficialmente que aqueles países seriam um dia membros da NATO. Porém, e em simultâneo, a Aliança recusava-se a conceder à Ucrânia e à Geórgia Membership Action Plans. Aos olhos da opinião pública, a divisão interna era indisfarçável.

Quais as recomendações do painel de especialistas em relação a estes dois temas? Elas são breves e muito pragmáticas. No que diz respeito à Rússia os aliados transatlânticos devem seguir a opção de envolver ainda mais activamente este país no debate sobre a segurança europeia, insistindo numa cooperação efectiva centrada na resolução de ameaças comuns como o terrorismo, a proliferação nuclear e o narcotráfico. Em relação ao alargamento, recomendam a confirmação da porta aberta da organização, mas também que os eventuais candidatos só devem ser admitidos depois de plenamente realizados os requisitos exigidos. O que, claramente, não é o caso nem da Geórgia nem da Ucrânia.

Custos, limites e parcerias

“A NATO não é uma prerrogativa adquirida, mas uma responsabilidade continuada” esclarecem os especialistas no seu relatório. Ora, como qualquer responsabilidade, também esta tem custos que importa assumir: custos políticos, custos financeiros e, o que nem sempre é tido na devida conta, custos morais e custos humanos. Custos que deveriam ser obviados pelos princípios da solidariedade e da partilha inerentes a todas as alianças. Só que isso não tem acontecido na Aliança transatlântica. A esmagadora maioria dos aliados europeus têm vindo a diminuir as suas despesas e a desinvestir fortemente nas áreas da segurança e da defesa, sendo que apenas seis desses Estados despendem os acordados 2% ou mais do seu PIB nesses domínios. Em consequência, a desproporção entre os EUA e os restantes aliados tem vindo a aumentar sucessivamente nos últimos 20 anos, tendência que com a actual crise económica não parece ir inverter-se. Mas mais preocupante é a constatação de que operacionalmente a NATO começa a ressentir-se dessa situação. É a própria Stefanie Babst quem o reconhece: “No momento em que a NATO não conseguir garantir que as suas forças, sobretudo as colocadas em missões internacionais, estejam bem equipadas e treinadas é melhor parar pois não podemos deixar as suas vidas em perigo. E estamos no limite de isso acontecer.” É igualmente esta preocupação que explica a insistente referência do grupo Albright sobre a necessidade da Aliança reconhecer pragmaticamente os seus limites: a NATO é uma aliança regional com autoridade e recursos limitados e, como tal, “não pode ser encarada como a solução para todos os problemas que afectam a segurança internacional.”

Uma condição indispensável para obviar muitos dos limites e constrangimentos a que a Aliança tem estado sujeita nos últimos anos, é o reconhecimento de que ela é apenas um – inegavelmente o mais bem sucedido – de entre vários instrumentos de estabilização e segurança da ordem internacional. Outra condição não menos importante é o futuro reforço e alargamento das suas parcerias. Das mais clássicas, com os grandes Estados europeus como a Rússia, como com os países do Diálogo do Mediterrâneo ou da Iniciativa de Cooperação de Istambul, ou até mesmo com Estados longínquos como a Austrália e o Japão. Mas, igualmente, das parcerias com outras organizações internacionais universais, como a ONU, ou regionais, como a OSCE e, especialmente, com a UE (afinal as duas organizações partilham 21 Estados-membros comuns!). Mas também de outras parcerias à primeira vista pouco prováveis, tal como Hillary Clinton explicou recentemente num seminário em Washington: “[A] NATO procurará oportunidades de colaboração junto de países e de organizações que connosco partilhem os seus princípios e prioridades. Mas também poderá vir a estabelecer parcerias com base em interesses compartidos e na necessidade geográfica.” E, neste domínio, os especialistas sugerem o estabelecimento de uma segunda geração de parcerias com países como a China, as repúblicas da Ásia Central e certos Estados do Sudeste Asiático, ou organizações regionais como a União Africana, a Organização para a Cooperação de Xangai ou o Conselho de Cooperação do Golfo.

A Cimeira de Lisboa e a gestão de expectativas

A agenda da Cimeira de Lisboa é ainda uma incógnita. No entanto, dois tópicos estarão certamente em destaque: a reafirmação das funções nucleares da Aliança e a centralidade da diplomacia pública. Relativamente ao primeiro tópico, a sua acuidade decorre principalmente do crescimento recente da Aliança, tanto em Estados membros como em tarefas. É necessário que os Estados-membros se recentrem naquelas que são as funções originais e estruturantes da NATO: a defesa de cada um dos aliados de qualquer ameaça de agressão independentemente da sua origem, a contribuição cooperativa para a segurança abrangente de toda a região euro-atlântica e, finalmente, a protecção e fortalecimento da estrutura transatlântica de consultas e gestão de crises. Nesse sentido, o novo conceito estratégico deverá flexibilizar o entendimento do artigo 5º do Tratado Fundador que estabelece a cláusula de defesa colectiva e, simultaneamente, reforçar e alargar o artigo 4º relativo às consultas políticas entre os aliados. Deste modo, ficará acautelada uma maior capacidade de inovação nas soluções a encontrar com vista ao cumprimento das funções nucleares, incluindo a possibilidade de respostas não necessariamente militares.

Não sendo propriamente recente, o segundo tópico tem ganho maior relevância na última década: à NATO parece faltar-lhe uma base de legitimidade generalizada do tipo da que normalmente é atribuída à ONU. Como bem explicam os especialistas no seu relatório, “apesar de a NATO nunca ter estado tão activa como agora, o reconhecimento da sua importância nunca foi tão pouco generalizado.” Vários são os factores que explicam esse facto: o crescente mas natural afastamento dos eleitorados democráticos de todas as políticas relacionadas com a defesa e segurança; um certo estilo praticado pela anterior administração norte-americana na sua política externa; a própria crise económica; uma certa leitura pacifista e utópica dos media; e uma política de comunicação nem sempre bem sucedida da própria organização. Independentemente de todos estes factores, um dado é certo: a NATO precisa de contar a sua história de maneira convincente e eficaz. E nos próximos dez anos o seu sucesso vai em muito depender disso mesmo. Ora, a narrativa inerente ao novo documento estratégico a aprovar em Lisboa é o melhor dos veículos para a concretização dessa missão.

Outros temas marcarão evidentemente a Cimeira de Novembro próximo, incluindo questões recentemente introduzidas como a do estabelecimento de um sistema de defesa anti-míssil ou temas mais internos à própria organização, como a sua reforma institucional e administrativa. Numa perspectiva inversa, o que não estará certamente em cima da mesa em Lisboa, como algumas vozes menos atentas ou pouco sérias parecem fazer crer, é a sobrevivência da NATO. A vitalidade da Aliança transatlântica é manifesta, aliados fundadores como a França voltaram a integrar a sua estrutura militar, vários candidatos a membros alinham-se à sua porta, intervenções como a de Stefanie Babst no IEP continuam a atrair muitos interessados. Aos 61 anos, a NATO prepara-se para enfrentar mais uma década da sua já longa história. Uma história que no século XXI terá de ser marcada por uma grande versatilidade, uma sólida sensatez na aplicação dos seus recursos e, principalmente, uma enorme lucidez na defesa daquele que continua a ser o seu valor central: a liberdade.


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