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Liberdade Perdida e Liberdade Recuperada


Liberdade Perdida e Liberdade Recuperada

Para os cultores da liberdade de expressão, o nome do poeta e estadista John Milton (1608-1674), secretário pessoal do revolucionário republicano inglês Oliver Cromwell, é absolutamente incontornável.

Aeropagítica
John Milton

Almedina, 2009

POR JÓNATAS MACHADO

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Liberdade Perdida e Liberdade RecuperadaPossuidor de uma cultura excepcional, o seu ensaio Areopagitica, escrito em 1644 como desafio à censura parlamentar, notabilizou-se entre os escritos que, na Inglaterra do século XVII, num contexto de grande trepidação teológico-política, defenderam a ideia revolucionária segundo a qual em matérias controvertidas cada um deve poder examinar e julgar livremente. Para além do reconhecimento devido a republicanos como James Herrington, Marchamont Nedham ou Henry Neville, sem esquecer os representantes menos conhecidos do movimento dos Levellers, John Milton, escrevendo no quadro do puritanismo independentista, deu um forte contributo para que os direitos individuais fossem gradualmente adquirindo uma posição de centralidade no sistema político-jurídico inglês, orientação que viria a triunfar na Gloriosa Revolução de 1688.

A abertura de espírito de John Milton manifesta-se também no companheirismo intelectual que o ligou a Roger Williams, fundador da colónia de Rhode Island, na Nova Inglaterra, o qual, pelo regime de ampla liberdade religiosa que aí estabeleceu, é ainda hoje por muitos considerado o pai da liberdade religiosa. Salienta-se também o encontro pessoal que John Milton teve, em Florença, com Galileu Galilei, então nominalmente prisioneiro da Inquisição por causa das suas ideias sobre a astronomia.

Num contexto caracterizado pela alta tensão teológico-política, em que diferentes visões da fé e da Igreja conduziam a diferentes visões do indivíduo, da consciência individual e do lugar que estes deveriam ocupar na conformação política do Estado e da sociedade, John Milton, ele mesmo profundamente religioso, advogou e praticou uma ampla liberdade de expressão religiosa, mostrando que uma convicção religiosa profunda, longe de conduzir necessariamente ao autoritarismo dogmático e censório, pode ser plena e consistentemente compatível com a promoção da liberdade.

Em nome da consciência individual, John Milton combateu a tirania na Igreja e a tirania no Estado. Para ele, a existência de seitas na Igreja e de partidos no Estado, longe de ser um mal a combater, era um sinal muito apreciado de vitalidade dos corpos eclesiástico e político.

O modo como a sua visão do mundo o levou a tratar empenhadamente das mais variadas questões religiosas, políticas e sociais do seu tempo, recorda-nos hoje que, longe de ser composta por sistemas diferenciados e separados entre si, a sociedade é um espaço em que se digladiam diferentes visões do mundo e em que tudo tem que ver com tudo. Diferentes visões do mundo condicionam o modo como se encara a religião, a política, a economia, a educação, a cultura, a ciência, a família, o lazer, etc., não existindo um ponto fixo a partir do qual alguém possa reclamar para si um estatuto especial de objectividade e neutralidade. Para John Milton o mundo é constituído, desde a queda do homem e da perda do paraíso do Éden, por uma batalha espiritual de proporções épicas e cósmicas entre a verdade e o erro. Nessa batalha, a verdade acabará inevitavelmente por triunfar sobre o erro. Para John Milton, esse triunfo não tem que ser alcançado através da força e da violência, como pensavam os Inquisidores, mas sim através do confronto livre e aberto de ideias. Nesse confronto, a divina providência, mais do que a força persuasiva das ideias, acabará por fazer triunfar a verdade. Em todo caso, à luz da visão do mundo miltoniana, essa intervenção providencial não exime os indivíduos das suas responsabilidades intelectuais. No entender de John Milton, a Razão divina manifesta-se nos esforços criadores e expressivos da razão humana. Daí que atentar contra esses esforços seja equivalente a atentar contra a Razão em si mesma. Os seres humanos devem investigar livremente o vício e o erro para melhor conhecerem e confirmarem a virtude e a verdade. Isso só pode ser conseguido através da leitura atenta e crítica de toda a espécie de livros e da análise de toda a espécie de razões. Para John Milton, era claro que a procura da verdade só seria realmente possível através de um processo conversacional aberto, onde mesmo os “advogados do diabo” pudessem livremente apresentar e sustentar as suas razões. Deste modo, John Milton teve o mérito de defender a democratização do discurso religioso, lutando contra as tentativas, na altura católicas e protestantes, de centralizar, monopolizar e hierarquizar o debate em torno das questões eclesiásticas.

Uma tão vigorosa defesa da liberdade de consciência e de expressão no plano religioso não deixaria de ter um impacto revolucionário nos sistemas teológicopolíticos existentes à época, cuja base de legitimação era indissociável da imposição centralizada e autoritária de dogmas religiosos. Assim se compreende o facto de os argumentos avançados por John Milton em defesa da liberdade de expressão, apesar de impregnados pelo zelo religioso, não terem deixado de influenciar fortemente homens tão distintos como John Locke, marcado por um Cristianismo mais racional, ou Thomas Jefferson, em que o racionalismo e o cepticismo claramente se sobrepunham às proposições de fé do Cristianismo protestante tradicional. Além disso, foi pelo nome de Mirabeau que o ensaio Areopagitica foi traduzido para o francês, tendo a voz de John Milton sido claramente ouvida durante a Revolução Francesa, ao ponto de o mesmo ter sido honrado, em 1790, como um dos Pais Fundadores desse importante acontecimento histórico.

John Milton, ele mesmo profundamente religioso, advogou e praticou uma ampla liberdade de expressão religiosa, mostrando que uma convicção religiosa profunda, longe de conduzir necessariamente ao autoritarismo dogmático e censório, pode ser plena e consistentemente compatível com a promoção da liberdade

A defesa que John Milton fez da liberdade de expressão seria mais tarde aprofundada, com argumentos mais sofisticados e racionalizados pelo filósofo utilitarista inglês John Stuart Mill. Este sustentou, no seu ensaio On Liberty, que nenhuma opinião, maioritária ou minoritária, deveria ser silenciada, porque poderia dar-se o caso de a mesma ser verdadeira e de se estar, dessa forma, a silenciar uma ideia verdadeira. Para John Stuart Mill, mesmo a expressão de uma opinião errada pode ser importante, na medida em que ajuda a tornar mais clara e nítida a verdade. De acordo com este entendimento, a expressão de uma opinião errada pode ajudar a refinar e a confirmar uma ideia correcta. John Stuart Mill defendeu que todo o exercício do poder coercivo restritivo da liberdade individual encontra o seu fundamento na protecção da sociedade de quaisquer danos que a mesma possa enfrentar. Para além disso, não existe qualquer outra razão para restringir a liberdade. O aperfeiçoamento moral da sociedade pode ser conseguido, não pela força, mas pela argumentação, pela demonstração e pela persuasão.

Os domínios íntimos da consciência devem prevalecer sobre o paternalismo do Estado. O exercício de uma ampla liberdade individual é visto como promovendo, a longo prazo, a maior utilidade para o maior número.

Liberdade Perdida e Liberdade RecuperadaO livre desenvolvimento individual é a melhor garantia do livre desenvolvimento da humanidade. A retórica de John Stuart Mill demonstra que, mesmo do ponto de vista meramente pragmático e utilitarista, existe um perigo óbvio na supressão das opiniões. Também não é desprovido de sentido ver no trabalho de John Milton a inspiração remota para a metáfora do mercado livre das ideias, proposta pelo célebre juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes. Esta metáfora tem sido aprofundada pela análise económica do direito, salientando-se o carácter voluntário, não coactivo e descentralizado da troca de ideias, dominada também ela pela lei da oferta e da procura. De acordo com este modelo explicativo, a mão invisível do mercado das ideias faz triunfar a ideia que consegue uma maior atractividade junto do público. A liberdade de expressão apresenta-se, neste contexto, como o direito da concorrência das ideias, combatendo a concentração monopolista de poder comunicativo e facilitando o acesso de novas ideias ao mercado. Este modelo afasta-se de John Milton, quer porque não clarifica a relação entre o mercado das ideias e a liberdade individual, quer porque não garante o triunfo da verdade, prescindindo até da afirmação da sua existência. O mercado das ideias conduz apenas ao triunfo das ideias mais procuradas pelo público, podendo isso conduzir à coexistência de diferentes “verdades”, mesmo contrárias entre si. Na prática, o mercado das ideias revela-se particularmente eficaz na produção de ideias simples e baratas, de preferência que não exijam grande esforço crítico. Em todo o caso, a metáfora do mercado livre das ideias, apesar de vincular a comunicação a uma estrutura impessoal, tem o mérito de sublinhar os aspectos sistémicos da comunicação, de apontar para a necessidade de reduzir os custos de transacção na circulação de ideias e de corrigir as falhas no mercado dos processos comunicativos. Porém, estes objectivos só adquirem realmente significado constitucional e valor intrínseco se e na medida em que pressuponham uma ligação essencial entre a liberdade de expressão e a autonomia racional e moral-prática dos indivíduos.

Juntamente com Oliver Wendell Holmes, outros juristas eminentes, como Louis Brandeis e Learned Hand, deram um importante contributo para a clarificação dogmático-constitucional da conexão interna que se estabelece entre o direito à liberdade de expressão e a realização do autogoverno democrático. Este direito é visto como um instrumento essencial para a descoberta e a disseminação da “verdade política” e para o controlo das patologias do processo político. De acordo com este entendimento, a liberdade de sufrágio de nada vale se as perspectivas políticas que o mesmo exprime não forem livremente formadas a partir de um processo dialógico de contraposição e debate de ideias “desinibido, robusto e amplamente aberto”, como eloquentemente se disse na jurisprudência do Supremo Tribunal norte-americano. A democracia supõe sempre uma opinião pública autónoma, sendo que esta só se consegue através de uma estrutura comunicativa livre e descentralizada. É interessante notar que a função democrática da liberdade de expressão transforma o exercício deste direito fundamental num dever cívico.

No entanto, também esta ênfase na democracia está longe de constituir uma verdade evidente por si mesma, a partir do momento em que a dignidade e a liberdade individual passam a ocupar um lugar marginal no espaço comunicativo. A democracia pretende ser o regime político de indivíduos livres e iguais. Na verdade, a desvalorização da dimensão individual da liberdade de expressão em benefício do valor instrumental que a mesma tem na promoção da participação democrática colectiva pode conduzir à distinção artificial e filosoficamente dúbia entre discurso político e discurso não político, seguida da desvalorização de todo o discurso considerado como não político. Além disso, ao desvalorizar o papel do indivíduo como produtor de sentido, ela pode acabar por fragilizar as próprias bases em que se apoia a própria democracia. Para que isso não aconteça, importa que a comunicação e a deliberação inerentes ao processo político democrático encontrem o seu fundamento último na dignidade da pessoa humana.

Actualmente discute-se uma versão darwinista do mercado das ideias, que aplica a categoria da selecção natural à concorrência entre ideias. O conhecido evolucionista Richard Dawkins é um exemplo típico, com a sua concepção “memética” que compara as ideias, que designa por “memes”, aos genes, desse modo enfatizando o seu carácter auto-replicante e a sua capacidade para ganharem vida própria, escapando ao controlo dos próprios indivíduos que as produzem. De acordo com esta concepção, as ideias seriam replicadores impessoais sem qualquer vínculo necessário à mente humana. Apesar de o argumento de Richard Dawkins ter o mérito de acentuar os elementos competitivos da luta de ideias, o mesmo não deixa de ter as suas fragilidades. Desde logo, ele apoia-se numa redução naturalista das ideias a meros estados cerebrais, ou a processos físico-químicos, podendo conduzir, se levada às suas últimas consequências, à negação da própria racionalidade humana. Além disso, este argumento ignora o facto de que, no contexto das ideias, a selecção operada longe de se basear em processos aleatórios e naturais, é sempre mediada pela experiência, pela inteligência e pelos interesses humanos. De resto, muitos casos há em que as ideias que triunfam não são necessariamente as mais aptas, quanto tomadas em si mesmas, mas simplesmente aquelas que resultaram do triunfo ideológico e coercivo dos grupos sociais política, económica e militarmente mais poderosos numa determinada conjuntura histórica. A experiência literária e política de John Milton mostra que esse domínio ideológico pode ser deliberadamente combatido, não pela simples activação de ideias autoreplicantes, mas pela promoção consciente e empenhada de ideais de justiça e dignidade e da busca humana da auto-transcendência, acompanhada da concepção e estruturação inteligente de instituições democráticas e justas. Diante desta realidade, a despersonalização e a autonomização das ideias como simples replicadores, desvalorizando a humanidade da sua génese, pode ser utilizada para justificar a censura das ideias que sejam pontualmente consideradas como nocivas e perigosas. E isso, a pretexto de se estar, desse modo, apenas a censurar ideias e não a silenciar pessoas, na sua qualidade de titulares do direito à liberdade de expressão. À luz dos seus próprios critérios, a concepção “memética” de Richard Dawkins pode ser considerada, em si mesma, um “meme” nocivo e perigoso. No entanto, pelos critérios de John Milton, nem por isso deve ela ser censurada. Antes deve ser argumentativamente examinada e criticamente desconstruída, num encontro livre e aberto de ideias, e só então rejeitada com base nas razões acabadas de expor.

Neste sentido, um regresso ao paraíso perdido da razão, da consciência, da dignidade e da autonomia individuais, colocando a pessoa humana de novo no centro da produção e troca das ideias, tal como postulado por John Milton, parece ser um caminho muito mais avisado e promissor.

A proposta de John Milton, juntamente com os recursos epistémicos em que se apoia, continua a ser inteiramente válida nos nossos dias, quando se assiste a uma transformação estrutural da esfera pública global e a um alargamento sem paralelo das possibilidades de comunicação. Essa transformação não tem impedido o ressurgimento, em vários quadrantes e sob várias formas, do fervor religioso, em termos que alguns têm sugestivamente comparado com o século XVII. Paradoxalmente, ou talvez não, a mesma surge acompanhada de não poucos apelos à intolerância e à censura por parte de sectores religiosos e secularistas extremados.

De acordo com aquela proposta, a discussão de todos os aspectos relacionados com a origem, o sentido e o destino da humanidade deve ser inteiramente livre. O mesmo sucede com o debate em torno da organização e da experiência sociais. Mais do que por razões de ordem utilitária, por imperativos de mercado, por razões democrático-funcionais ou pelo poder auto-replicante das ideias, a liberdade de consciência, pensamento e expressão deve justificar-se a partir e por causa da especial dignidade da pessoa humana, enquanto centro espiritual e moral autónomo de produção de sentido e cultura. Em 2008, ano em que se celebram os quatrocentos anos do nascimento de John Milton, o princípio do livre exame dos textos e das ideias mantém toda a sua actualidade e pertinência.

Por isso se saúda vivamente a iniciativa da publicação da obra Areopagitica entre nós.


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