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Uma Jóia em África


Uma Jóia em África

A evolução política recente no Zimbabwe chama, novamente, a atenção para um livro publicado há cerca de vinte anos. Trata-se de “Serving Secretly” da autoria do antigo chefe dos serviços secretos rodesianos, Ken Flower.

Serving Secretly - An intelligence chief on record: Rhodesia into Zimbabwe, 1964 to 1981
Ken Flower

  Harare, John Murray, 1987

POR VICENTE DE PAIVA BRANDÃO

Docente da Universidade Lusíada e Doutorando do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Este narra ao longo de 330 páginas a sua vida na antiga Rodésia do Sul, onde colaborou com cinco Primeiro-Ministros. O autor chegou ao território em 1937, após ter concorrido a um lugar na polícia local. A propósito da sua escolha, Flower comenta com humor que ela, provavelmente, se deveu ao facto de necessitarem de um jogador na equipa de râguebi.

Com o inicio da II Guerra Mundial, parte do contingente policial é enviado para a Etiópia. Os sete anos seguintes são passados a tentar ajudar a causa somali, até que o governo de Clement Attlee decidiu cessar o auxílio.

No final dos anos 40, Flower estava de regresso ao continente africano e continuou a progredir na carreira policial. Na década seguinte começou a sentir-se a necessidade de se constituir um serviço de informações. Vencidas as tensões e as rivalidades orgânicas usuais, surgiu a Central Intelligence Organisation (CIO), na dependência do Primeiro-Ministro. A Rodésia tinha sofrido, no pós-guerra, uma alteração substancial ao nível da sua composição étnica. Os brancos tinham duplicado em número, fruto da deslocação de indivíduos da Índia, Quénia e Grã-Bretanha. A população proveniente da Europa procurava, na Rodésia, melhores condições de vida, e, os outros, pretendiam escapar à agitação e aos distúrbios que visavam atingir, em muitos casos, a comunidade branca. Isto não significava que a Rodésia estivesse isenta de dificuldades. Bem, pelo contrário, elas adensavam-se no horizonte. Os negros mostravam-se cada vez mais descontentes e uma facção do partido no poder – a Rhodesian Front (RF) -, favorecia a independência face ao Reino Unido. Aliás, esta querela esteve na origem do afastamento de Winston Field do cargo de Primeiro-Ministro, em Abril de 1964.

A vitória da facção, que queria a ruptura com a Grã-Bretanha conduziu ao poder, Ian Smith. De facto, a “Unilateral Declaration of Independence” (UDI) e as relações com Londres, iriam dominar a agenda política rodesiana, ao longo da década de 60.

Smith, começou, desde logo, a juntar à sua volta pessoas que fossem favoráveis àquela iniciativa. Curiosamente, Ken Flower manteve-se no cargo porque era visto como alguém que poderia contrapor argumentos em relação aos mais optimistas – os “wishful thinkers”; nomeadamente, aqueles que defendiam a ruptura com a Grã-Bretanha e não previam consequências de maior. Outra sorte teve o chefe do exército, Major-General Anderson, o ministro dos assuntos africanos, Stan Morris, e o ministro dos negócios estrangeiros e defesa, Benoy.

No sentido de arregimentar adeptos para a sua causa, o Primeiro-Ministro rodesiano aproximou-se mais da África do Sul e Portugal. Se a primeira não representava uma novidade, devido aos laços já existentes entre os dois territórios; o segundo caso, configurava uma manobra diplomática inovadora, tanto para Salisbúria como para Lisboa. A preocupação em causa justifi cou a ida de Ian Smith e Ken Flower à capital portuguesa, em Setembro de 1964. Este não assistiu ao encontro entre Salazar e Smith. Contudo, registou a percepção de que a conversa teria sido crucial para a posição que o líder rodesiano haveria de adoptar face aos britânicos.

Embora Flower não tenha presenciado a reunião entre aquelas personalidades, conheceu vários membros da elite política e militar portuguesa, entre os quais o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, e o General Venâncio Deslandes. Estes impressionaram-no favoravelmente, vindo a considerar Deslandes um bom amigo da Rodésia.

Em relação a Nogueira, este teria feito um comentário “demolidor” a Smith, que lhe foi reproduzido nos seguintes moldes: “ Oh, by the way, Dr. Nogueira told me yesterday evening that I had two traitors in my midst – you and Benoy – and his advice to me was to get rid of you as soon as possible” 1.

O hábil chefe da diplomacia portuguesa havia percebido as fortes reservas de Flower e de Benoy, no que respeitava à UDI.

Indiferente aos relatórios provenientes dos serviços secretos, o governo rodesiano tomou a decisão de optar pela UDI, em 19 de Outubro de 1965.

Numa declaração formulada perante o Conselho de Segurança rodesiano, o Primeiro-Ministro afi rmou que a opinião pública britânica estava ciente das razões rodesianas e que os políticos americanos compreendiam melhor a posição de Salisbúria. A França estava em sintonia com a Rodésia.

Quanto a Portugal e à África do Sul, só não clamavam publicamente o respectivo apoio, devido a razões políticas.

A propósito, Flower considerava que a atitude portuguesa não se devia tanto a ela ser pró-Rodésia, mas mais por existir um sentimento antibritânico, resultante da posição assumida por Londres aquando da invasão de Goa por forças da União Indiana, em 1961.

A partir de Dezembro de 1965, os acontecimentos precipitam-se, com o embargo petrolífero decretado pelos britânicos e apoiado nas Nações Unidas.

Afastada a hipótese de uma intervenção militar, Londres considerou que seria suficiente um bloqueio, de forma a impossibilitar o trânsito de combustível para a Rodésia.

A situação atingiu um momento crítico para as autoridades portuguesas, quando estas se viram confrontadas com a chegada de navios ao porto da Beira, com carga destinada aquele país.

Sob a orientação de Jorge Jardim, astuto empresário moçambicano e agente de Salazar, estabeleceu-se uma rota alternativa, via África do Sul e Lourenço Marques, de modo a continuar o abastecimento à Rodésia. Simultaneamente, foi ordenado ao “Ionna V” (o navio que ocupou o lugar central nesta questão) que se afastasse do porto da Beira, criando uma sensação de vitória do lado inglês.

A manobra discreta concertada entre Portugal e a África do Sul, havia conseguido ludibriar as sanções decretadas por Londres. À Rodésia, nunca faltaria o combustível indispensável para assegurar o consumo normal.

Ken Flower sairia claramente agastado com o desenvolvimento desta questão, ao lamentar-se pelo facto de Ian Smith ter dado mais crédito aos conselhos de Jorge Jardim, do que aos do chefe do seu serviço de informações.

Paralelamente à tensão com o Reino Unido, a Rodésia enfrentava a ameaça proveniente do nacionalismo africano, o que colocava o país perante dificuldades já sentidas nas colónias portuguesas. Entre estas, interessava sobretudo o caso moçambicano, devido à extensa fronteira partilhada com a Rodésia. As afinidades entre o movimento opositor às autoridades portuguesas em Moçambique – Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) -, e os grupos nacionalistas rodesianos, eram conhecidas. Estes últimos, operavam, sobretudo, a partir da zona de Tete.

Paralelamente à tensão com o Reino Unido, a Rodésia enfrentava a ameaça proveniente do nacionalismo africano

No inicio da década de 70, os rodesianos assistiam com cepticismo ao evoluir da guerra em Moçambique. Ken Flower assumia abertamente as críticas ao dispositivo militar português, que, inclusivamente, foram apresentadas a Marcello Caetano.

Numa visita a Portugal, em Setembro de 1971, o chefe do CIO encontrou-se com o Presidente do Conselho, no Palácio de Queluz. Aí, disse-lhe que era necessária uma maior aproximação às populações locais e atribuir-se mais responsabilidades às forças policiais. O alvo central do respectivo argumento era a estratégia seguida pelo General Kaúlza de Arriaga, Comandante-Chefe das Forças Armadas, em território moçambicano.

Uma Jóia em ÁfricaUma orientação semelhante foi seguida por Ian Smith, num encontro com Caetano, um ano mais tarde. Embora aqui, o problema tenha sido colocado, de um modo mais diplomático, ao nível das alterações que permitissem as condições para a continuidade da presença portuguesa em Moçambique. Por outras palavras, existia a percepção clara de que seria muito difícil aos rodesianos conservar o “status quo” político, sem os portugueses no outro lado da fronteira. Adivinhava-se um futuro intranquilo para o regime de Ian Smith, que Flower sintetizou do seguinte modo: “From a winning position between 1964 and 1972, Rhodesian Forces were entering the stage of the “no-win” war, which lasted from December 1972 to 1976; after that, they were fighting a losing war”. Pressentiam-se novos tempos, que não tardariam a chegar. A situação interna tinha obrigado, desde 1976, o governo a dialogar com os líderes nacionalistas. A questão crucial colocava-se em torno da regra da maioria. Aceitar esta orientação iria conduzir ao fim do domínio branco na Rodésia. Daí, Smith ter optado por protelar a questão, incluindo alguns negros no governo; medida, que não teve o alcance esperado, uma vez que não satisfez inteiramente as expectativas de qualquer sector.

Entretanto, o evoluir da guerra ia provocando um desgaste evidente no executivo rodesiano.

Perante o agravamento da situação interna e a pressão da comunidade internacional, é concluído um acordo com a oposição (em 3 de Março de 1978), que conduziu, após um período transitório, à realização de eleições, em Abril de 1979. Estas registaram a vitória do Bispo Abel Muzorewa, que substituiu Ian Smith no cargo de Primeiro-Ministro, no mês seguinte.

Mas a liderança de Muzorewa não conseguiu pacificar a sociedade rodesiana. Os britânicos foram, assim, chamados a patrocinar um novo acordo, que surgiu na sequência de longas e difíceis negociações, em “Lancaster House”, no final desse ano.

Apesar da existência de um clima de grande instabilidade política e da ostentação de rivalidades no âmbito militar, efectuaram-se eleições, que culminaram com a vitória de Robert Mugabe. Os resultados foram anunciados em 4 de Março de 1980.

Cerca de um mês mais tarde, o território alcançaria, finalmente, a independência, sob a designação de Zimbabwe.

Numa das primeiras visitas oficiais ao novo país, Robert Mugabe recebeu Julius Nyerere. No decurso de uma conversa, este afirmou num tom que haveria de ser profético: “você herdou uma jóia em África, não a ensombre”. Infelizmente, Mugabe há muito que esqueceu as palavras do antigo presidente da Tanzânia.

O rico conjunto de factos mencionados e o tom descontraído, senão ousado em certos casos, confere a “Serving Secretly” um continuado interesse e actualidade, que talvez seja o maior elogio que se pode fazer a uma obra publicada, em 1987. Não restam dúvidas de que Ken Flower soube escrever para a posteridade.

 


1 Ken Flower, Serving Secretly: An intelligence chief on record: Rhodesia into Zimbabwe, 1964 to 1981, Harare, John Murray, p. 35.


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