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Os Bancos Centrais e a Legitimidade do Poder não Eleito


Os Bancos Centrais e a Legitimidade do Poder não Eleito

Para que os bancos centrais se mantenham úteis ao serviço da sociedade, é importante não só assegurar a sua independência, como também a sua legitimidade aos olhos das democracias liberais. Um equilíbrio difícil de alcançar no contexto actual.

Paul Tucker
Unelected Power: The Quest for Legitimacy in Central Banking and the Regulatory State?
Princeton University Press, 22 de Maio de 2018

Luís Leal de Faria,

Aluno de Doutoramento, IEP-UCP

Os Bancos Centrais e a Legitimidade do Poder não Eleito Na sequência das grandes inflações das décadas de 60 e 70, a maioria dos bancos centrais caminhou para uma maior autonomia do poder político, sendo amplamente consensual que para se ter uma política monetária eficaz no controlo da inflação, é necessário um elevado grau de isolamento de eventuais pressões políticas, frequentemente motivadas por ganhos de curto-prazo. No entanto, muitos dos pressupostos, que até agora têm sustentado o quadro económico e financeiro das últimas décadas, parecem estar a ser postos em causa. Concretamente, são cada vez mais evidentes os ataques à independência dos bancos centrais, incluindo nos EUA, antes líder no movimento para uma maior independência dos bancos centrais, e agora palco de frequentes ataques do Presidente Donald Trump à política monetária do Fed. São também visíveis sinais crescentes de pressão política sobre os bancos centrais um pouco por todo o mundo, destacando-se os casos da Índia, Turquia, Rússia, Nigéria, África do Sul, Japão e Itália. Serão estes fenómenos uma consequência do aumento dos populismos? Terão os bancos centrais assumido demasiadas responsabilidades na sequência da crise financeira mundial iniciada em 2008? Quais são os riscos de concentrar demasiado poder no banco central? Até que ponto é legítimo que instituições não eleitas tomem decisões com impactos distributivos significativos? Como é possível equilibrar a independência dos bancos centrais com a necessidade de prestar contas ao poder eleito?

Ninguém melhor que Sir Paul Tucker para ajudar a abordar estas questões. Com mais de 30 de anos experiência no Banco de Inglaterra, onde foi Vice-Governador entre 2009 e 2013, é hoje Senior Fellow no Centro de Estudos Europeus da Universidade de Harvard e Chair do Systemic Risk Council, um importante órgão não-partidário que aborda questões regulatórias e estruturais relacionadas com o risco sistémico glo- bal. No seu livro mais recente, Unelected Power: The Quest for Legitimacy in Central Banking and the Regulatory State, Tucker apresenta uma reflexão detalhada sobre os princípios que devem orientar uma legítima delegação de poder de políticos democraticamente eleitos em agências independentes. O autor defende que a existência de agências isoladas da política é não só benéfica para a sociedade, como é compatível com os valores democráticos liberais, desde que o seu poder seja devidamente contido, responsabilizado e legitimado. Na base do seu argumento está a ideia de que é possível ir para além de uma escolha binária entre um “populismo hiper-politizado” e uma “tecnocracia hiper-despolitizada”. Neste sentido, pretende-se assim evitar comprometer o longo-prazo através de políticas de curto-prazo irresponsáveis, o que acaba por ser muitas vezes defendido por líderes populistas em nome do seu suposto alinhamento com o interesse da população, como é também desejável combater a ideia de que pode existir uma espécie de método científico para determinar o que é o melhor para a população. Esta visão, excessivamente tecnocrática, pode aliás levar os cidadãos a sentirem que o Estado está distante das suas necessidades reais, levando-os precisamente a apoiar movimentos populistas. É na procura deste equilíbrio que Tucker se propõe a estabelecer uma série de princípios que determinem quando e em que condições é adequada a delegação de poder para agências independentes. Nomeadamente, no “quando” delegar, o autor defende que a delegação é benéfica se resolver a necessidade de manter um compromisso credível e socialmente necessário, o qual seria dificilmente assegurado pelo poder eleito (como por exemplo a manutenção da inflação baixa), sendo contudo fundamental evitar que o cumprimento deste compromisso implique entrar em grandes opções de distribuição de riqueza. Quanto às “condições” para a delegação, Tucker propõe uma série de preceitos a serem cumpridos, realçando-se por exemplo, a necessidade de existirem objectivos, poderes e responsabilidades bem definidas pela legislatura, a procura pela transparência que possibilite um escrutínio democrático e o debate público, bem como a necessidade de serem estabelecidos procedimentos claros que permitam aos políticos eleitos determinar até que ponto, em caso de emergência, se justifica uma extensão dos poderes de determinada agência.

Os Bancos Centrais e a Legitimidade do Poder não EleitoEmbora o debate sobre a fronteira entre o poder político e o poder tecnocrático não seja novo, Tucker desenvolve a sua argumentação tendo por base um contexto em que esta fronteira é cada vez menos evidente, especialmente no caso dos bancos centrais, os quais têm vindo a assumir uma acumulação de responsabilidades cada vez maior desde o início da crise financeira. Com efeito, se antes da crise, a política monetária era vista como algo amplamente consensual, sendo a sua execução muito limitada nos julgamentos de distribuição de riqueza, a situação tem-se invertido na última década. A aplicação de políticas não convencionais veio alterar substancialmente o papel dos bancos centrais na economia. Assim, medidas como a compra massiva de títulos dos governos e de privados, não só alteram o balanço dos governos, como também têm impactos significativos de transferências de riqueza na economia. Acabam assim por entrar no campo da política fiscal, que por envolver julgamentos de valor, tornam-se menos consensuais, estando por isso tradicionalmente na alçada de governos eleitos. Por outro lado, a crise levou alguns bancos centrais, como por exemplo o BCE, a assumir funções de supervisão, levando a uma (ainda) maior transferência de poder para uma mesma instituição. Neste contexto, até que ponto os bancos centrais não se estarão a tornar cidadãos com poderes excessivos (“overmighty citizens”)?

Esta preocupação orienta as mais de 600 páginas do livro de Tucker e terá tendência a ser cada vez mais debatida. De facto, embora os bancos centrais tenham sido cruciais na resposta à crise iniciada em 2008, foram criadas demasiadas expectativas quanto ao seu papel na economia. Os próprios bancos centrais são os primeiros a ter consciência desse risco, alertando frequentemente para os limites da política monetária e apelando a reformas estruturais sistematicamente adiadas pelos governos. Desta forma, se por um lado persistem dúvidas quanto à eficácia das actuais medidas não convencionais na resolução de crises futuras, por outro lado, a transferência de mais poder para os bancos centrais, por exemplo através de instrumentos fiscais, pode correr o risco de não estar em conformidade com uma legítima delegação de poder. Deste modo, a desejável existência de bancos centrais independentes e eficazes no cumprimento do seu mandato, só será possível se existir um alinhamento de expectativas quanto ao seu papel na sociedade, o que inclui uma reorientação de como os bancos centrais e os governos actuam e interagem. Neste sentido, os princípios de delegação, desenvolvidos por Paul Tucker em Unelected Power, são certamente um bom ponto de partida para, caso a caso, discutir de que forma é possível assegurar que os bancos centrais permanecem independentes, eficientes e legítimos aos olhos das democracias liberais.


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