• +351 217 214 129
  • This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

Homenagem Carl Gershman e a Luta pela Democracia

Marc Plattner

Marc Plattner

Chairman IEP; International Advisory Board; Fundador and co-editor, Journal of Democracy

Carl Gershman, presidente fundador do National Endowment for Democracy (NED), reformou-se em Julho de 2021 depois de 37 anos no leme. As suas contribuições para a causa da democracia por todo o mundo foram extraordinárias. Entre elas, está o papel central que teve no lançamento do Journal of Democracy. O seu colega de longa data Marc Plattner, o co-editor fundador do Journal, reflecte aqui acerca dos feitos de Carl e nas qualidades que permitiram que este fosse tão bem sucedido na liderança do NED ao longo de quase quatro décadas.
Tradução Maria Cortesão Monteiro

Em Julho de 2021, Carl Gershman, o presidente fundador do National Endowment for Democracy (NED), reformou-se depois de 37 anos no leme. Embora pouco conhecido do público, o Carl tornou-se uma figura de liderança dentro da “comunidade democrática” global, muito admirado pela sua energia notável e a sua devoção incansável à causa da democracia. Não acredito que Carl tenha alguma vez procurado outra posição. Conseguiu o trabalho que mais queria no mundo. É difícil imaginar um encaixe mais perfeito entre um líder e a organização que lidera do que o existente entre Carl e o NED.

Carl chegou ao NED imerso na luta global pela democracia e pelos direitos humanos, bem como no movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Quando foi seleccionado pelo Conselho de Administração do NED para ser o novato primeiro presidente da organização em Abril de 1984, teve de aprender rapidamente como operar em Washington. Tinha um percurso modesto em termos de experiência governamental, tendo trabalhado durante três anos como consultor sénior para o embaixador americano nas Nações Unidas, Jeane Kirkpatrick. Isso ajudava pouco, no entanto, a lidar com o Congresso, do qual dependia o financiamento e futuro do NED. Mas o Carl tinha outros tipos de experiência que acabaram por ser muitíssimo úteis na tarefa formidável de dirigir uma organização política polémica e novinha em folha.

De 1969 a 1971, Carl tinha sido o Director de Investigação do A. Philip Randolph Institute, onde trabalhou de perto com Bayard Rustin, o líder dos direitos civis que tinha organizado a Marcha de 1963 em Washington. O Carl também se tornou líder do Young People’s Socialist League (YPSL), a ala jovem dos social democratas, e em 1974 foi escolhido para ser o Director Executivo da organização-mãe, Social Democrats USA (SDUSA). Nesta função, era também activo na Internacional Socalista e veio a conhecer muitos líderes políticos democráticos da Europa e outras partes do mundo. Entre eles estava Mário Soares, primeiro-ministro português e herói da transição democrática do seu país, que em 1977 falou perante mais de quatrocentas pessoas num evento em Nova Iorque organizado pela SDUSA.

Carl também é um intelectual, mesmo que nunca tenha sido um académico. Embora fosse erradamente tratado por desconhecidos como “Dr. Gershman”, a sua única graduação é um mestrado em educação por Harvard. A sua verdadeira aprendizagem foi nos duros e intensos debates e controvérsias políticas em que se envolvia como líder do YPSL e do SUDSA. Era também um excelente escritor cujos artigos apareciam em publicações como Dissent, Commentary, o New Leader, o Wall Street Journal, e a New York Times Magazine. Ele convidava grandes pensadores como Sidney Hook, Leszek Kolakowski, e Walter Laqueur a irem falar à SDUSA, e desenvolvia amizades próximas com eles. Carl tinha sido bem treinado tanto em travar a batalha das ideias como em luta política. Também estava bem preparado para liderar uma organização bipartidária, pois tinha forte apoio tanto do movimento trabalhista americano (liderado pelo seu bom amigo Lane Kirkland) como dos conservadores que eram admiradores de Jeane Kirkpatrick.

O Endowment passou por algumas dificuldades nos seus primeiros anos. Uma decisão da Câmara dos Representantes para eliminar o financiamento do NED, tomada menos de um mês depois de Carl ter começado a trabalhar, poderia ter efectivamente acabado com a organização, não tivesse sido revertida por um renhido voto no Senado. Recordo-me vivamente de, ao longo desses anos, pensar quão pesado era o fardo que Carl carregava - um que eu não quereria carregar. Mas Carl persistiu, e o NED conseguiu ultrapassar os seus oponentes e iniciar a expansão que levou ao aumento do seu orçamento de 18 milhões em 1984 para mais de 300 milhões em 2021. Os louros deste feliz desfecho foram partilhados por outros tanto da direcção como dos trabalhadores do NED, bem como pelos seus quatro principais financiadores (o Solidarity Center, o Center for International Private Enterprise, e o National Democratic Institute, e o International Republican Institute), mas penso que a maioria dos observadores concordariam que Carl foi um elemento chave no sucesso do NED.

Carl garantiu que o NED apoiava a luta pela democracia em todo o lado

Homenagem Carl Gershman e a Luta pela DemocraciaO aumento do apoio congressista ao Endowment deveu-se muito, claro, à natureza dos seus programas e ao carácter dos seus financiadores. Havia inicialmente, em ambos os lados, uma forte desconfiança relativamente à orientação política do NED - os liberais temiam uma operação anticomunista que negligenciaria oponentes das ditaduras de extrema direita, e os consevadores temiam que este minasse os regimes autoritários amigos dos Estados Unidos. Sob a direcção de Carl, o NED provou que tais receios de uma abordagem unilateral estavam errados. Ele garantiu que o NED apoiava a luta pela democracia em todo o lado - no Chile, na África do Sul, nas Filipinas e na Coreia do Sul, mas também no Nicarágua, em Cuba, na Polónia, na União Soviética e na China. O NED demonstrou que apoiaria oponentes de ditadores tanto de direita como de esquerda, bem como grupos de democratas em países em transição ou que estavam a trabalhar na consolidação de um sistema democrático.

A ferramenta mais eficiente do NED para ganhar apoio do Congresso foram os seus financiadores, parte dos quais Carl trouxe a Capitol Hill para conhecerem membros e staff. Estes foram os melhores defensores do NED, um conjunto notável de homens e mulheres que, em muitos casos, tinham passado por perseguição e prisão pela sua luta democrática. Conhecer e conversar com estas pessoas convencia até os mais cépticos de que o NED não era nem um empreendimento estritamente ideológico nem, como alguns de seus primeiros críticos alegaram, um desperdício de recursos em viagens oferecidas a pessoas com boas ligações políticas.

A Declaração de Princípios e Objetivos aprovada pelo Conselho do NED em 1984 delineou cinco áreas sobre as quais o Fundo faria doações e realizaria atividades: 1) pluralismo; 2) governança democrática e processos políticos; 3) educação, cultura e comunicação; 4) investigação; e 5) cooperação internacional. Embora estivesse previsto que os dois últimos receberiam menos recursos, Carl e eu considerámo-los de grande importância. Nos seus primeiros anos, o NED apoiou alguns projetos de investigação, nomeadamente o estudo de vários volumes Democracy in Developing Countries, realizado por Seymour Martin Lipset, Juan Linz e Larry Diamond.

No entanto, quando a equipa do NED, no Outono de 1988, recomendou uma nova bolsa para um projeto de pesquisa sobre a relação entre instituições políticas e estabilidade democrática nos países em desenvolvimento, o Conselho recusou, em grande parte devido à oposição do membro do Conselho Zbigniew Brzezinski. Brzezinski reconheceu que se tratava de uma excelente proposta de excelentes académicos, mas argumentou que eles deveriam conseguir obter apoio de outras organizações que financiavam a investigação em Ciências Sociais. Os corajosos activistas que lutavam em prol da democracia na Polónia e noutros locais, pelo contrário, tinham poucas outras fontes a que pudessem recorrer. Dada a amplitude das necessidades e as limitações do orçamento do NED (que na altura era muito apertado), Brzezinski concluiu que o NED deveria reservar os seus fundos para aqueles que se encontram na linha da frente da luta pela democracia. À luz da sua própria eminência académica, os seus colegas membros do Conselho não estiveram inclinados a desafiá-lo.

Por volta dessa altura, eu começava a ter dúvidas acerca de se queria ou não continuar no NED. Disse isso a Carl, embora tivesse imenso respeito pela organização e respectiva missão, o meu trabalho como director do programa de bolsas tinha grandes responsabilidades em termos de gestão e deixava-me muito pouco tempo para o tipo de investigação, escrita e edição para que sentia que tinha mais pendor. A resposta do Carl foi de tentar arranjar uma solução que me mantivesse a bordo, mas que também permitisse que o NED ficasse ligado ao pensar sobre democracia. Ele relembrou-me que já tínhamos um dia falado da possibilidade de o NED vir a querer publicar uma revista sobre democracia. Eu respondi que adoraria editar essa revista e que ficaria no NED para aproveitar essa oportunidade.

O problema era, claro, que o orçamento do NED era limitado e era improvável que Conselho aprovasse usar os seus fundos congressionais para cobrir os custos de operar uma revista. A solução de Carl: devíamos angariar fundos privados para financiar o lançamento de uma nova revista. Eu delineei uma proposta para submetermos a fundações privadas, e Carl foi buscar os seus contactos do sector filantrópico para nos ajudar a angariar os fundos necessários. Ele também contactou Leszek Kolakowski e Octavio Paz e persuadiu-os a serem parte do nosso Conselho Editorial inicial (juntamente com Lipset, Linz e Samuel Huntington). Com a ajuda de Carl, conseguimos obter fundos suficientes para lançar o Journal of Democracy, que abriu um pequeno escritório dentro do NED em Setembro de 1989 e publicou o seu número inaugural em Janeiro de 1990.

Penso que Carl foi o primeiro a sugerir trazermos o Larry Diamond para ser co-editor. Eu tinha conhecido o Larry em 1985 num encontro em Stanford do projecto “Democracia em Países em Desenvolvimento”, financiado pelo NED; depois disso, ele falou em vários eventos NED e tornou-se bom amigo tanto de Carl como meu. Eu gostei da ideia de termos como co-editor em tempo parcial alguém que estava baseado na universidade, pois essa tinha sido a estrutura na Public Interest, a revista onde eu tinha sido editor durante os anos 70: Irving Kristol era o editor residente, enquanto primeiro o Daniel Bell e depois o Nathan Glazer (ambos professores em Harvard) trabalhavam como co-editores. Aceitei alegremente a ideia de convidar o Larry para ser meu co-editor, e ele ficou muito entusiasmado por aceitar.

Depois do lançamento do Journal, Carl continuou a ser o seu maior impulsionador e ajudou-o a ganhar maior reconhecimento e apoio externo. Ao longo dos anos também contribuiu para as suas páginas, com nove artigos e recensões. Ocasionalmente, fazia sugestões acerca de assuntos que poderíamos abordar ou autores que poderíamos contactar. Seguimos algumas — se bem que certamente que não todas — destas sugestões, mas Carl nunca nos pressionou. De facto, ele sempre respeitou escrupulosamente a independência e integridade editorial do Journal, algo que foi e continua a ser vital para o seu sucesso. Ele percebeu que se o Journal fosse visto como “órgão de comunicação da casa” do NED, o seu impacto e influência ficariam certamente diminuídos.

Uma figura de liderança dentro da “comunidade democrática” global, muito admirado pela sua energia notável e a sua devoção incansável à causa da democracia

Homenagem Carl Gershman e a Luta pela DemocraciaCarl teve ainda um papel fundamental em fazer com que o Conselho de Adminstração do NED aprovasse a criação do International Forum for Demo- cratic Studies, que abriu o seu escritório em Abril de 1994 e também começou com financiamento privado significativo. Uma espécie de think tank interno inicialmente construído à volta do Journal, o Forum inclui um programa de investigação e de conferências, académicos residentes, e um centro de recursos que inclui livros e informações online sobre democracia. Inicialmente, não havia financiamento disponível para fornecer bolsas aos membros. Mas em 2000, após o falecimento do principal fundador e primeiro presidente do NED, o congressista Dante Fascell, Carl conseguiu financiamento do Congresso para o estabelecimento do Reagan-Fascell Democracy Fellows Program, que agora recebe por ano cerca de dezoito bolsistas por períodos de cinco meses.

Carl sempre demonstrou uma afeição especial pelos membros, muitos dos quais foram bolsistas do NED, e passava bastante tempo a conversar com cada um deles. Estes recordam normalmente o seu grande interesse tanto nas suas situações pessoais como na política dos seus países de origem. Ficavam também surpreendidos com a sua modéstia - não estavam habituados a receber tanta atenção do CEO de uma grande instituição. Carl conquista a estima deles da mesma forma que conquista a de outros activistas democrá- ticos de todo o mundo — interessando-se significativamente pelas suas preocupações e tratando-os como colegas e iguais. Com o espaço para a sociedade civil a diminuir continuamente em muitos países, o programa de bolsas tornou-se cada vez mais um refúgio de curto prazo para activistas democráticos que sofrem perseguição nos seus países de origem. O NED está a planear aumentar os seus esforços para apoiar democratas perseguidos e homenagear seu presidente cessante, criando um novo Fundo Carl Gershman para Democratas em Risco.

Carl também liderou o lançamento de várias outras iniciativas no NED, incluindo o World Movement for the Democracy e o Center for International Media Assistance. Além disso, esforçou-se muito em encorajar outros países a começarem ou expandirem as suas próprias actividades de apoio à democracia. A Westminster Foundation britânica, a Taiwan Foundation for Democracy ou o European Endowment for Democracy surgiram todos com a ajuda de Carl. Nos últimos anos ele tem ele assumiu a liderança na elaboração de declarações destinadas a reunir os democratas, como o notável Prague Appeal for Democratic Renewal, que deu azo à International Coalition for Democratic Renewal, gerido pelo Fórum 2000, sediado em Praga. De forma notável, ele conseguiu tudo isso enquanto supervisionava o crescimento em larga escala do programa de bolsas do NED e a expansão de sua equipa de menos de dez pessoas em 1984 para cerca de 265 hoje em dia.

Qual foi a chave do extraordinário sucesso de Carl na liderança do NED? A primeira é uma energia infatigável, alimentada pelo seu insuperável entusiasmo pela causa da democracia. O seu empenho apaixonado foi muito apreciado pelos bolseiros e membros do NED. Também permitiu a Carl conquistar os cépticos do Congresso e infundir na equipa do NED um espírito de profundo respeito e admiração por todos os envolvidos na luta pela democracia. De facto, “luta” é uma palavra que Carl usa com frequência – está no cerne de como ele vê o mundo. Isso é o que mais claramente o distingue dos gerentes cautelosos e profissionais de carreira que lideram tantas outras instituições de Washington.

Homenagem Carl Gershman e a Luta pela DemocraciaAo contrário de muitos defensores apaixonados, no entanto, Carl é abençoado com um julgamento sóbrio, conhecimento estratégico e prontidão a consultar os outros. Ele é uma fonte de ideias; não é de surpreender que não sejam todas sólidas ou práticas, e os elementos séniores do NED muitas vezes tentaram desencorajar ou alterar significativamente as coisas que Carl se propunha a fazer. Ele geralmente ouvia os seus conselhos, mas quando decidia seguir em frente, apesar das dúvidas da equipa, os resultados muitas vezes confirmavam sua persistência. Carl tem também instintos políticos astutos e foi capaz de lidar com pessoas de orientações políticas muito diferentes, incluindo membros do Conselho do NED. Em suma, os seus entusiasmos eram temperados por prudência e moderação.

Para terminar, gostava de enfatizar os dons e paixões intelectuais de Carl. Embora o seu compromisso para com a democracia liberal tenha sido inabalável, em todos os outros aspectos ele tem a mente bastante aberta. Lê muito e de forma abrangente e interessa-se em ideias e cultura por si só. Tem, além disso, o maior respeito por pensadores sérios. Isso não apenas ampliou a sua visão do mundo, mas também o ajudou, creio, a resistir a qualquer tipo de tentação autoritária, tanto nas suas visões políticas como na sua vida profissional. Em suma, o sucesso de Carl na construção e liderança do NED foi produto de sua rara combinação de energia entusiástica, julgamento político prudente e mente intelectual aberta. Ele fará muita falta no NED, e sua partida será uma fonte de lamento para todos aqueles que se preocupam com o destino da democracia no mundo.

Artigo originalmente publicado no Journal of Democracy, em Outubro de 2021, Volume 32, Nº 4.


1000 Characters left


Please publish modules in offcanvas position.