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Obituário - José Cutileiro (1935-2020)

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José Manuel Durão Barroso

José Manuel Durão Barroso

Antigo presidente da Comissão Europeia, Director do Centro de Estudos Europeus do IEP-UCP, Conselho Editorial Nova Cidadania

Antigo presidente da Comissão Europeia lembra o longo caminho de trabalho comum com o falecido embaixador, iniciado em 1987 e que se prolongou até aos tempos em que liderou a União Europeia. Durão Barroso realça a sua vasta cultura e o intelecto cético.

A amizade reforçou-se muito durante os quase 10 anos em que José Cutileiro foi meu conselheiro especial Obituário - José Cutileiro (1935-2020) na Comissão Europeia e durante o convívio que eu próprio e a minha mulher, Margarida, mantivemos com o Zé e a Myriam, a qual também trabalhou na Comissão. No plano pessoal, não posso esquecer, além da solidariedade em tantos momentos da minha vida política e pós-política, o muito sentido e comovente In Memo riam que José Cutileiro escreveu nas páginas do Expresso assinalando a morte da Margarida. Depois da sua colaboração comigo na Comissão, até ao fim, e com uma regularidade e pontualidade quase sem falhas — e desculpava-se quando muito raramente havia algum atraso —, foi-me enviando os seus “bloco-notas” (o último, a que deu o título de “Outra vez a Avó Berta”, é de 11 de abril, já ele estava muito doente) e a propósito deles trocávamos opiniões e comentários sobre Portugal, a Europa e o mundo. Foi numa dessas ocasiões que, meio a brincar, lhe chamei “pessimista antropológico“ e parece-me que ele aceitou bem a qualificação. No último e-mail que me enviou, ele falava numa próxima guerra mundial como uma quase inevitabilidade. Não era tanto o seu pessimismo, mas antes o seu esforço de lucidez aquilo que nele eu realmente admirava.
A admiração era, para além da amizade, a outra dimensão do nosso relacionamento desde que o conheci no Ministério dos Negócios Estrangeiros, quando fui nomeado secretário de Estado, em 1987. Nele apreciava imenso o intelecto cético e o olhar sem ilusões sobre a sociedade e a política. Inteligência aguda (e por vezes impiedosa) e cultura muito ampla, sobretudo no campo da Literatura e da História, eram talvez as características mais relevantes de José Cutileiro, o qual sempre vi sobretudo como alguém que, para além de “diplomata acidental” que viria a ser adotado pelo MNE institucional, era um verdadeiro intelectual no bom sentido da palavra. Obituário - José Cutileiro (1935-2020) Autor de uma obra, “Ricos e Pobres no Alentejo”, sua tese de doutoramento em Oxford, que ainda hoje permanece como referência obrigatória, Cutileiro estava tão à vontade no Institute for Advanced Study, em Princeton, como na União da Europa Ocidental, da qual foi o último secretário-geral, ou nas Embaixadas de Portugal em Maputo e Pretória, ou ainda na Bósnia, para a qual o chamado plano de paz Carrington- Cutileiro teria sido uma melhor solução do que aquela que, após muitas mortes e muito sofrimento, viria a ser adotada pela força. Anglófilo, atlantista, racional e não idealisticamente pró-europeu, liberal e oposto a todos os dogmas, alentejano cosmopolita e “estrangeirado”, mas sempre, como - O’Neill, com Portugal como a questão que tinha consigo mesmo, José Cutileiro procurou manter uma independência política que era a que melhor se adequava ao seu temperamento e ao seu bem reconhecido ceticismo. O seu último livro, “Inventário” dos bloco-notas que vinha distribuindo por alguns dos seus amigos e que também publicara no blogue “Retrovisor”, tem significativamente o subtítulo “Desabafos e divagações de um cético“. Mas este ceticismo não significava cinismo, pois Cutileiro tinha convicções profundas e até mesmo algumas paixões, nomeadamente pela democracia liberal, pela poesia e pela cultura em geral. Julgo também que, com o tempo e a sabedoria que a idade por vezes consolida, ele foi ama ciando algumas das opiniões mais categóricas e muitas das arestas das suas críticas, nomeadamente aquelas que dirigia a Portugal. Como tipicamente acontece com tantos “estrangeirados”, ele dedicava ao seu país um tough love, que é um exercício de exigência e de insatisfação, mas também de remorso. Na minha opinião, o melhor tributo de Cutileiro ao nosso país era, aliás, a forma como escrevia em português. Belíssima escrita. Os “Bilhetes de Colares”, que assinava com o nome do seu alter ego, A. B. Kotter, ficam como do melhor, em matéria de estilo, de humor e de perspicácia, que alguma vez no género já se escreveu em português. O Zé planeava regressar a Portugal em abril. Tinha-me prometido que, se a saúde lhe permitisse, viria a uma das “Conversas sobre a Europa”, no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, em Lisboa. Infelizmente tal não foi nem será possível. Mas, como ele escreveu em “Entre mortos e vivos”, um dos seus últimos bloco-notas: “Há mortos e mortas com quem às vezes prefiro estar do que com muitas vivas e vivos que por aí andam... Do lado de lá, as pessoas ganham ainda outras características: se, por um lado, deixamos de as poder ver ou de esperar que elas nos chamem, por outro lado contamos com a sua companhia sempre que delas precisarmos enquanto tivermos memória para as trazermos até nós.”

Artigo originalmente publicado no jornal Expresso em 23 de Maio de 2020.

Contamos com a sua companhia sempre que delas precisarmos enquanto tivermos memória para as trazermos até nós


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