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Arménio Rego

Arménio Rego

Professor catedrático convidado Diretor do LEAD.Lab na Católica Porto Business School

Camilo Valverde

Camilo Valverde

Professor na Católica do Porto Business School, Portugal; Consultor nas áreas de Gestão de Recursos Humanos e Comportamento Organizacional

 

Perante a toxicidade de diversos contextos organizacionais e as respetivas consequências perversas para a saúde, discutimos razões pelas quais as pessoas permanecem em lugares tóxicos – mesmo quando poderiam abandoná-los. Apresentamos, também, algumas medidas preventivas.

Guilherme d’Oliveira Martins

Conselho de Administração, Fundação Calouste Gulbenkian Conselho Editorial, Nova Cidadania

A sua obra multifacetada permite-nos compreender a existência humana através da literatura e da arte.

Homenagem - Memória de José Régio

Uma coisa sei de certeza: Que nunca me arrependi de ter ido para Coimbra. Lá ganhei novos amigos. De lá saiu a presença. Lá passei pelo menos alguns dos anos mais felizes da minha vida. E creio que a minha criação literária lucrou com a ida para Coimbra, pois lá achei ele- mentos para um fecundo ambiente literário que não acharia no Porto”.

É o próprio José Régio quem o confessa, num dos seus últimos escritos, Confissão de Um Homem Religioso (1971), esta sua ligação muito especial a Coimbra. É verdade que as raízes de Régio estão em Vila da Conde e aí sentimos a força das bases telúricas, éticas e literárias. Mas o núcleo das amizades do poeta e romancista, encontramo-lo na cidade do Mondego, em Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões, Casais Monteiro, Edmundo de Bettencourt, Miguel Torga, Vitorino Ne- mésio ou Afonso Duarte... Aí começará a publicar (Poemas de Deus e do Diabo, 1925) e a ter contacto com a literatura como realidade viva, ligada necessariamente ao quotidiano e à cidadania. E no primeiro livro de poemas surge logo a associação a seu irmão Júlio (Saul Dias), desenhador e pintor que é uma extraordinária referência do segundo moder- nismo, com vincada influência de Chagall.

Depois, nas andanças docentes, Régio fixará em Portalegre o seu lugar de vida, em alternância com Vila do Conde. Para o biógrafo e intérprete fiel de Régio, Eugénio Lisboa: “o mais importante da sua biografia decorreu, como é o caso de tantos de nós, dentro de si próprio. As suas tempestades foram sobretudo interiores e são essas que irrigam, com vigor o tecido da sua obra” (José Régio ou a Confissão Relutante, Rolim, 1988). A consideração de Eduardo Lourenço sobre o carácter da obra de Régio e sobre a natureza da presença levará, no entanto, a uma estranha acumulação de equívocos, que só uma leitura mais atenta de “Presença ou a contrarrevolução do moder- nismo” (“Comércio do Porto”, 14.6.60) poderá esclarecer. O próprio Eduardo Lourenço preocupou-se em clarificar o que tinha dito, acrescentando a uma nova versão do texto o qualificativo “português” ao modernismo e um ponto de interrogação no final, procurando afastar qualquer entendimento político ou li- teral nessa ideia. Deste modo, Eugénio Lisboa, na comparação entre os dois modernismos, o de Orpheu e o da presença, afirma mesmo: “o primeiro modernismo foi um momento de convulsão e o segundo um momento de reflexão e consolidação” (Ibidem.). Um e o outro completam-se e diferenciam-se. E até se percebe que Nemésio tenha preferido, em dado momento, criar um outro órgão de ideias - a Revista de Portugal (1937) talvez menos contaminada com a proximidade dos modernismos... A razão parece hoje irónica, mas foi invocada.

“Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima de uma personalidade artística. A primeira condição de uma obra viva é pois ter uma personalidade a obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos, superficialmente, o que o diferencia dos mais (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjetivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo, o adjetivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalida de, calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas – mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre estas qualidades, o produto destes temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afetadas, semelhantes qualidade não passarão de um truque literá- rio” (presença, no 1, 1927). Eis o programa de Régio, que prefere, na sua batalha pela “Literatura Viva”, afirmar: “à personalidade do artista-criador nada proíbe a presença senão que se falseie; nada impõe senão que se revele” (“O Primeiro de Janeiro”, 25.10.44). No entanto, se desconfiava das originalidades “demasiado exibicionistas”, acusava de con- formismo a falta de originalidade e a falta de sinceridade. Numa palavra, o certo é que a presença tornou-se o verdadeiro arauto que exprimiu quão relevante e visível foi a geração de Orpheu.

Homenagem - Memória de José Régio Todavia, o segundo modernismo era, essencialmente, um momento de reflexão e consolidação – e é essa distinção que Eduardo Lourenço quis fazer, de modo metafórico. Aliás, o próprio Régio assume esta ambiguida- de, quando põe a dialogar, em A Velha Casa, Lelito com seu irmão João, e este diz: “Tornas falsas muitas coisas que são em si verdadeiras e sinceras”. E se o tema político merece toda a atenção tal deve-se à independência da revista e dos seus animadores, acima de toda a sus- peita, e sob muitas desconfianças. Não houve, de facto, conciliação com o regime nascido em 1926 – vejam-se, por exemplo, a publicação do texto fortemente crítico de Raul Leal, aquando da homenagem coimbrã a António Correia de Oliveira (1930); a identificação de Régio relativamente à posição política de António Sérgio; e a tomada de posição de Guilherme Castilho, José Marmelo e Silva e João Campos, quando a presença fechou as portas (1940), dando ênfase à fidelidade da revista aos valores do espírito que estavam a ser destruídos pelos senhores da guerra. O modernismo não era, assim, uma receita, mas uma atitude: “qualquer mestre de hoje só é modernista na medida em que, sem ter de negar seja qual for das descobertas vitais do passado, se encaminha para novas desco- bertas e antevê novos mundos... que podem não ser mais do que a imprevista sondagem dos mundos já conhecidos” (presença, no 23, dezembro de 1929). Régio foi sempre um escritor verdadeiramente livre, e encontramos nele: a compreensão da renovação da cultura portuguesa no século XX, com a geração de Orpheu, mas também com Teixeira de Pas- coaes e o melhor da Renascença Portuguesa; ou com a consideração do modernismo não como uma escola ou um grupo, mas como uma atitude orientada para a compreensão dos novos mundos; na interrogação aberta e inconformista da transcendência – na linha de Dostoievski, Tolstoi, Proust, Claudel e Gide. Régio não é apenas poeta – é sobretudo dramaturgo, ensaísta e romancista, e nesses domínios encontramos alguma da melhor expressão da sua criatividade. David Mourão- -Ferreira dirá: “Penetrante, arguto, tão apto por vezes para a síntese impressionista como para a análise psicológico-literária...”. A 22 de dezembro de 1969, em Vila do Conde, deixou-nos José Maria dos Reis Pereira, de- pois de uma vida de pedagogo, de escritor, de dramaturgo, de romancista, de novelista, de poeta, de contista, de ensaísta, de cronista, de memorialista. Foi há cinquenta anos. A sua obra multifacetada permite-nos compreender a existência humana através da literatura e da arte. E hoje voltamos a ler: “Era a hora do estudo da tarde, e Lelito pensava. As Catiliná- rias abertas na carteira, o dicionário à direita, o caderno de significados à esquerda e o lápis na mão – pareciam demonstrar que Lelito prepareva a sua lição de latim. Mas Lelito não pensava nas Catilinárias. Na realidade nem pensava...”


Guilherme d’Oliveira Martins

Conselho de Administração, Fundação Calouste Gulbenkian Conselho Editorial, Nova Cidadania

Jorge de Sena é uma referência para a nossa geração, pelos altos padrões de valores que nos apontou e pela sua coragem.

Concordo com António Feijó quando afirma que Jorge de Sena é uma referência para a nossa geração, pelos altos padrões de valores que nos apontou e pela sua coragem. O certo é que o escritor, o poeta, o ensaísta lutou por uma liberdade que não era compatível com a mediocridade. Daí a necessidade de trabalho, de persistência e de uma capacidade inequívoca de vislumbrar o outro lado das coisas. Sem a tentação de apenas ver a claro e escuro ou de se limitar ao próprio e ao alheio, Sena é uma referência. Isso mesmo tem gerado mil incompreensões e injustiça. Importa, por isso, lembrar os verdadeiros testemunhos e não comentários de despeito e de má-fé. Recordo bem, quando “O Tempo e o Modo” (no 59, Abril de 1968) publicou o número dedicado a Jorge de Sena, como houve vozes surdas e sonoras, desconfiadas, sem compreender, o que hoje sabemos, ou seja, a importância do pensamento e do método do polígrafo. António Cândido, que conheci, recordava amiúde: “Bastava conversar algum tempo com Jorge de Sena para perceber as suas fagulhas de genialidade. Na sua personalidade vulcânica, talvez o que mais impressionasse fosse a estrutura de contrastes. Era versátil de modo extensivo e, ao mesmo tempo, densamente profundo. Era arrebatado até à explosão e concentradamente reflexivo. A sua informação era inacreditável e a sua capacidade de captar conhecimento chegava a causar espanto pela rapidez e a penetração, só comparáveis à presteza com que traduzia os resultados em escrita”... Pedro Tamen, num depoimento dado à revista “Relâmpago” (no 21, 2007) resumiu o essencial: “Sena era impaciente e tinha mau feitio. Cometeu, sem dúvida, algumas injustiças; mas se o fez, foi por não ter pachorra para a mediocridade. Para o ‘reino da estupidez’. É que Jorge de Sena era superior mesmo”.

Há um ensaio notabilíssimo, não sobre os temas habituais de Jorge de Sena, mas sobre a grande filosofia política, que atesta bem a exigência de pensamento do mestre. Falo de «Maquiavel e o “Príncipe”», publicado em S. Paulo, pela Cultrix, em 1963, numa obra intitulada Livros que abala- ram o mundo. Nesse livro Sena escreveu ainda «Marx e “O Capital”». Entre nós, Maquiavel e Outros Estudos, foi publicado pela Livraria Paisagem, do Porto, em maio de 1974, envolvendo Miguel Ângelo, Shakespeare, Galileu, Marx, Rousseau, Chestov e Malraux... No dia em que li esse extraordinário texto, Maquiavel tornou-se não aquela figura que muitos associam a um adjetivo caricatural e falso, mas o grande moralista, pensador político, que refletiu sobre a unificação italiana como um sinal de civilização. Nem velhacaria nem perfídia, do que Maquiavel trata é de outra coisa, e por isso deve ser considerado como “um patriota italiano e um estadista angustiado por ver a Itália dividida em principados, repúblicas, estados papais, e territórios de potências estrangeiras”. “Foi e é, um dos maiores escritores da literatura italiana; e, se compreendida e situada no tempo dele, a sua obra é a de um dos mais argutos, lúcidos e corajosos pensadores políticos de todas as épocas”. A sua grande revolução do pensador é despir “a ação política de toda a transcendência e, sobretudo, de toda e qualquer sanção extrínseca aos próprios valores cuja conquista devem norteá-la”. Leia-se, aliás, a “Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya”, onde essa lembrança viva se encontra, “... o mesmo mundo que criemos / nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa / que não é nossa, que nos é cedida / para a guardarmos respeitosamente / em memória do sangue que nos corre nas veias, / da nossa carne que foi outra, do amor que / outros não amaram porque lho roubaram” (Metamorfoses, 1963).

Sem a tentação de apenas ver a claro e escuro ou de se limitar ao próprio e ao alheio, Sena é uma referência

Homenagem - Jorge de Sena - Referência de Liberdade Para Sena, Maquiavel “é um moralista na mais alta e nobre aceção da palavra: aquele que descreve os costumes humanos, os resultados a que eles conduzem, e as causas que os condicionam, com objeti- vidade clínica. Se daí pode ser extraído, ou não, um conjunto de normas morais que rejam o bem-viver em sociedade, eis o que excede o âmbito do seu pensamento. E excede-o, não porque entende lucidamente que, no plano político, a virtude só tem sentido se estiver ao serviço de alguma coisa concreta”. A intuição do ensaísta português é extraordinária, uma vez que insere o grande pensador italiano no grande movimento de emancipação política da contemporaneidade. Eis como o pensamento de Maquiavel é contrário àquilo que “tem sido pejorativamente acusado de o ser; e a exploração que tiranos e ditadores fizeram dele não passa de uma depravação criminosa da sua nobreza intrínseca, da sua coerência empírica, da sua dignidade fundamental”. Longe de uma ambivalência moral e da tentação de justificar a ilegitimidade e a tirania, do que se trata é da criação de condições para que a liberdade, a dignidade e a independência possam existir. O bem e o mal perdem sentido na vida sociopolítica se forem abstratamente dissociados, já que, como diz o povo, de boas intenções está o inferno cheio. No fundo, temos de entender que a República, é dela que Maquiavel nos fala, é um regime de pessoas imperfeitas, que têm de saber lidar com a imperfeição, para poderem ser melhores. A lucidez do escritor é demasiado crua? Mas é preciso partirmos dela para criar condições a fim de nos aproximarmos de uma “vita buona”, conscientes de que nunca será acabada e perfeita, uma vez que em tal caso se tornaria desumana. “Todo o pensamento e toda a ação levam em si aquilo que os contradiz e destrói, aquilo que os fará inferiores à realidade que os ultrapassa”. De facto, “pensamento e realidade criam-se mutuamente, e é a criação, o ato de criar, o que os excede a ambos, e não um que se excede ao outro”.

Basta lembrarmo-nos do ciclo de frescos de Ambrogio Lorenzetti no Palazzo Pubblico de Siena, para compreendermos a importância e o sentido do texto de Maquiavel. Aí se oferecem as representações iconográficas dos conceitos políticos abstratos: a Paz, a Concórdia e a Segurança, por oposição à Guerra, à Divisão e ao Medo. E como mostrou Quentin Skinner, o grande pensador contemporâneo que tem estudado o tema, a alegoria do Bom Governo deve ser interpretada como a tradução visual duma ideologia: a do ideal da cidadania e da autonomia republicana, que se desenvolveu nas cidades-estado em Itália no início do Renascimento – e que Maquiavel deseja generalizar. Nesta perspetiva “Lorenzetti não se contenta com ilustrar uma ideologia da vida civil, contribui simultaneamente para produzir esta ideologia e da maneira mais espetacular. Ora, é a esta luz que o “Príncipe” deve ser lido, como extraordinária apresentação positiva de uma ideologia inovadora sobre as raízes republicanas do que hoje designamos como Democracia. Trata-se, no fundo da demarcação necessária relativamente às diversas formas de despotismo e tirania. Por isso, Jorge de Sena foi perentório: “A monstruosidade do príncipe maquiavélico é apenas, paradoxalmente, a do homem reduzido à sua virtù. E, se Maquiavel foi genial nesta redução que restitui o homem à sua dignidade responsável, foi porque retirou ao homem a desculpa de atribuir-se o direito de ser monstruoso à escala divina”.


João Carlos Espada

João Carlos Espada

Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Director de Nova Cidadania

Foi sobre o mistério da cultura política de língua inglesa — associando liberdade e sentido de dever — que a distinta historiadora Gertrude Himmelfarb nos deixou uma obra inesquecível.

Na passada terça-feira, 31 de Dezembro, recebi pelas 14h06 um email de William Kristol intitulado “sad news”. Abri com hesitação, e os meus receios foram infelizmente confirmados. Bill informava os amigos de que sua mãe, Gertrude Himmelfarb, morrera na noite anterior, aos 97 anos, em casa e pacificamente. Fiquei em profundo silêncio, com lágrimas nos olhos. Recordei com comoção o nosso último jantar em Washington, no final de 2016, em que ela me anunciara o seu próximo livro, Past and Present: The Challenges of Modernity, from Pre-Victorians to the Postmodernists (Encounter Classics, 2017). E a seguir deambulei sozinho durante horas, pelas ruas do Estoril, recordando a minha querida Bea Kristol (como Gertrude Himmelfarb era conhecida entre os amigos, desde que casara com Irving Kristol, em... 1942).

Gertrude Himmelfarb, Irving Kristol, Raymond Plant, Ralf Dahrendorf e Karl Popper estão entre os autores que mais terão marcado intelectualmente a minha vida adulta — e que me apoiaram pessoalmente e desinteressadamente, como tenho procurado testemunhar em vários livros recentes. Todos conheci primeiro pelos seus livros, só depois tive o privilegio de os conhecer pessoalmente. No caso de Gertrude Himmelfarb, o grande responsável foi Karl Popper (através de quem, a propósito, também tinha vindo a conhecer Dahrendorf).

Nos distantes anos de 1990-1994 (quando fazia o meu doutoramento em Oxford sob orientação de Dahrendorf e visitas regulares a casa de Popper), Karl Popper disse-me que devia ler um livro de uma tal Gertrude Himmelfarb sobre Lord Acton (um católico liberal inglês do século XIX de quem eu nunca tinha ouvido falar). Fui à Blackwell’s, mas o livro não estava lá. Deram-me, em alternativa, um outro livro de Himmelfarb: Victorian Minds: A Study of Intellectuals in Crisis and Ideologies in Transition (original de 1952). Li o livro de um fôlego e voltei no dia seguinte à Blackwell’s, onde encomendei todos os livros de Himmelfarb. E os livros foram chegando pouco a pouco — e eu fui lendo todos, simplesmente encantado.

Obituário - Gertrude Himmelfarb (1922-2019) - Uma homenagem pessoalCriticou o marxismo e o relativismo pós-moderno, recordando que o niilismo nietzschiano, a par do relativismo materialista do marxismo, tinham estado associados à atmosfera intelectual que minara a democracia ocidental

Fui a seguir para a América, em 1994-96, onde leccionei na Universidade de Brown e depois em Stanford. Foi de lá que comecei a escrever cartas insistentes a Gertrude Himmelfarb (só mais tarde percebi que era casada com o famoso “pai do neo-conservadorismo” Irving Kristol, director da excelente revista The Public Interest (1965-2005), cuja colecção completa Dahrendorf tinha no seu escritório em Oxford — e que aliás mais tarde muito amavelmente me ofereceu). Nessas cartas, pedi repetidamente que nos encontrássemos. Finalmente, Gertrude Himmelfarb e Irving Kristol aceitaram jantar comigo em Washington — julgo que a 2 de Maio de 1996, porque é a data da dedicatória de Bea no livro Victorian Minds, que eu fiz questão de levar comigo.

Foi um jantar inesquecível, mas só me lembro de duas coisas: primeiro, muito anormalmente, não toquei no vinho; segundo, após uma longa conversa em que eu falei demasiado e muito nervosamente, eles perguntaram-me: “como se definiria politicamente?”. Julguei que ia desmaiar. Sei que, após um longo silêncio, terei dito: “Não sei... Talvez um liberal vitoriano?” Julgo recordar que eles me envolveram com um vasto e doce sorriso, quase paternal.

Depois desse jantar, Bea e Irving passaram a convidar-me para vários encontros com vários amigos em Washington. Foi através deles que conheci o seu filho, Bill Kristol, e depois Michael Novak, George F. Will, Christopher de Muth, Charles Krauthammer, Walter Berns, entre tantos outros. E foi na sequência desse jantar que Gertrude Himmelfarb aceitou o convite para dar uma conferência em Lisboa, no âmbito do ciclo “A Invenção Democrática”, que coordenei por muito amável convite de Mário Soares para assinalar o lançamento da sua Fundação Mário Soares (entre Outubro de 1996 e Dezembro de 1997).

Foi uma noite memorável, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 23 de Maio de 1997. Gertrude Himmelfarb foi eloquentemente apresentada pela historiadora Maria Filomena Mónica. A seguir, Bea proferiu uma vigorosa palestra sobre “Democracia e Valores Modernos”. Criticou o marxismo e, sobretudo, o relativismo pós-moderno, recordando que o niilismo nietzschiano, a par do relativismo materialista do marxismo, tinham estado associados à atmosfera intelectual que minara a democracia ocidental. E terminou recordando o papel do sentido vitoriano de dever e da religião judaico-cristã na defesa dos padrões de decência e pluralismo das democracias que resistiram à avalanche comunista-fascista na década de 1930.

A palestra foi ouvida em total silêncio. No final, contudo, uma avalanche de perguntas hostis tomou o palco. Lembro-me de uma garota pedir a palavra e dizer que não tinha ouvido um discurso tão reaccionário “desde os tempos de Salazar” (que ela obviamente não podia ter conhecido). Gertrude Himmelfarb estava totalmente surpreendida. Respondeu a todos tranquilamente, sublinhando que estava a defender as democracias de língua inglesa que tinham resistido sozinhas à coligação nazi-comunista.

No dia seguinte, ao almoço (na York House, em Lisboa, na Rua das Janelas Verdes), Bea lamentou que pudesse ter gerado algum embaraço — a mim e, sobretudo, ao ex-Presidente Mário Soares, um socialista. Mas também deixou claro que ficara surpreendida com o radicalismo da reacção ocorrida — em que se exprimira a clássica confusão francófona entre liberalismo conservador e reaccionarismo anti-liberal e contra-revolucionário.

Na altura, julgando sentir o desconforto de Mário Soares, coloquei o meu lugar à sua disposição, explicando que não queria marcar a inauguração da sua Fundação com pontos de vista que ele pudesse considerar desconfortáveis. Soares reagiu com a sua clássica compostura e disse qualquer coisa do género: “Bem, que a senhora Himmelfarb é bastante mais conservadora do que eu, não restam dúvidas. Mas era o que faltava que eu fosse agora reinstalar a censura salazarista ou comunista, depois de ter passado a vida a lutar contra elas! Continue com este programa pluralista que é de grande qualidade!”

Os Caminhos para a Modernidade

Gertrude Himmelfarb
Os Caminhos para a Modernidade Os Iluminismos Britânico, Francês e Americano
Edições 70, 2015

A mesma série de conferências, com ligeiras adaptações e sob o mesmo título “The Democratic Invention”, foi depois repetida em Washington sob a égide do National Endowment for Democracy, por iniciativa de Marc F. Plattner, director fundador do Journal of Democracy (que é também presidente fundador do International Advisory Board do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica). Mário Soares foi homenageado no Congresso norte-americano na ocasião da primeira conferência da nova série, por ele proferida em Washington a 3 de Junho de 1997. As palestras foram depois publicadas em livro, em português e em inglês.

Gertrude Himmelfarb colocou esta arte de evitar “infelizes dicotomias” no centro dos Iluminismos britânico e americano, por contraste com o radicalismo dogmático do Iluminismo francês e continental

Mário Soares era, à sua maneira e ainda que não gostasse de o admitir, um admirador das grandes democracias de língua inglesa que tinham resistido sozinhas à barbárie nazi-comunista. Gertrude Himmelfarb foi sobretudo uma distinta historiadora da Inglaterra Vitoriana e da subtil combinação entre liberdade e sentido de dever que esteve subjacente ao chamado “milagre inglês”. Como ela escreveu em Victorian Minds, “o verdadeiro ‘milagre da Inglaterra moderna’ (a expressão famosa de Elie Halevy) não foi que ela tenha sido poupada à revolução, mas que ela tenha assimilado tantas revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem recurso à Revolução.” (p. 292)

Isto foi possível porque a cultura política de língua inglesa soube sempre evitar aquilo que Dahrendorf designava por “dicotomias infelizes”: entre passado e futuro, tradição e mudança, fé e razão, patriotismo e cosmopolitismo. Gertrude Himmelfarb colocou esta arte de evitar “infelizes dicotomias” no centro dos Iluminismos britânico e americano, por contraste com o radicalismo dogmático do Iluminismo francês e continental:

“Os Iluminismos britânico e americano foram latitudinários, compatíveis com um largo espectro de crença e descrença. Não houve Kulturkampf naqueles países para distrair e dividir a população, colocando o passado contra o presente, confrontando o sentimento esclarecido contra instituições retrógradas, e criando uma divisão inultrapassável entre razão e religião... E, para ambos os Iluminismos (britânico e americano), a religião era um aliado, não um inimigo”. [Os Caminhos para a Modernidade: Os Iluminismos Britânico, Francês e Americano, 2004, edição portuguesa: Edições 70, 2015, p. 27).

Talvez aqui tenha residido um dos ingredientes do que o austro-britânico Sir Karl Popper chamava o mistério do espírito de “gentlemanship”, que ele colocava no centro da cultura política de língua inglesa — que o tinha acolhido no exílio (primeiro na Nova Zelândia, depois em Londres) e que ele tanto admirava. Por “gentlemanship”, Popper designava a atitude de alguém “que não se leva demasiado a sério, mas que está pronto a levar muito a sério os seus deveres, sobretudo quando a maioria à sua volta só fala dos seus direitos”.

Foi sobre este mistério da cultura política de língua inglesa que a distinta historiadora Gertrude Himmelfarb nos deixou uma obra inesquecível.

Artigo originalmente publicado no Jornal Observador


Guilherme d’Oliveira Martins

Guilherme d’Oliveira Martins

Conselho de Administração, Fundação Calouste Gulbenkian; Conselho Editorial, Nova Cidadania

Diogo Freitas do Amaral ensinou-nos a não baixar os braços.

A última vez que estivemos juntos foi a trabalhar, em casa de uma amiga comum, a Professora Maria da Glória Garcia. Apesar de frágil fisicamente, continuava a ser o mesmo, extremamente metódico e rigoroso, afável e disponível, sem perder o fio condutor do bom método. Tratava-se de reorganizar o grupo dos amigos do Mosteiro dos Jerónimos, nascido da preocupação de não considerar o Ano Europeu do Património Cultural como um momento passageiro e sem consequência. Quando, há dias qualifiquei, sentidamente, Diogo Freitas do Amaral como um homem de causas, estava a pensar em vários dos momentos da sua vida, alguns em que nos encontrámos e convergimos. Para o jovem professor que encontrei na Faculdade de Direito em 1970, foi essa uma das marcas do seu carácter que me atraiu. Mais do que o formalismo do ato administrativo, importava, essencialmente, ver a Administração Pública como realidade viva, ao serviço dos cidadãos e da realização do bem comum. E quando, nesse tempo, estudávamos realidades novas, como o ordenamento do território, era a aproximação aos cidadãos que estava em causa. E quando líamos Alexandre Herculano a reclamar a governança do país pelo país e a ligar a liberdade cívica à melhor organização dos povos e ao reconhecimento do valor matricial do municipalismo, descobríamos, naturalmente, a importância do reformismo. Estávamos num tempo em que a ideia de reforma não podia deixar de entrar na ordem do dia.

Se falo de Herculano é, também, para dizer que encontrei sempre em Diogo Freitas do Amaral a paixão da história, da história política e da história das ideias. Os temas culturais entusiasmavam-no. Nota-se essa inclinação em obras como: “D. Afonso Henriques – Uma Biografia” (2000), “D. Afonso III, o Bolonhês, um Grande Homem de Estado” (2015) e “Da Lusitânia a Portugal. Dois Mil Anos de História” (2017). Tivemos oportunidade de falar sobre esses temas, e a leitura dessas obras significa, antes do mais, repercussão de uma prática anglo-saxónica evidenciada em muitos grandes intelectuais e políticos (como Roy Jenkins) que leva à reflexão e à escrita, muitas vezes biográfica, de modo a enriquecer o debate de ideias. As três obras referidas enquadram-se nessa boa tradição. Mas outras houve que deixou, designadamente para melhor compreensão dos diversos temas jurídicos e políticos que estudou. É a reflexão política que está presente – ligando a visão crítica dos acontecimentos históricos e sobre a evolução de Portugal. O caso de D. Afonso III é evidente. De facto, o pai de D. Dinis é quem cria condições para a constituição pioneira de um Estado pós-medieval, com unidade política, administrativa, económica e cultural. Vindo do centro da Europa, o Bolonhês, o grande homem de Estado, conseguiu construir no ocidente peninsular uma realidade moderna, que abrirá horizontes para os fulgurantes séculos XIV e XV. Esse sentido reformador entusiasmou o nosso autor, que escreveu a obra histórica a pensar no Portugal de hoje, a partir da Europa, e na necessidade de planear o futuro com horizontes abertos e largos. O mesmo se diga da biografia de D. Afonso Henriques, onde é a rigorosa análise política que prevalece, com destaque para a compreensão da importância de consolidar a frente marítima – que até aos nossos dias se tem revelado essencial. Aqui esteve a divergência política (longe explicações psicanalíticas) com a mãe, D. Teresa, que estava apegada à manutenção de influência no reino asturo-leonês e na Galiza... O que esteve em causa, como o autor confirma, seguindo a melhor doutrina, foi a amplitude significativa da revolta dos barões portucalenses, bem como “a impressão causada pelas qualidades combatentes e de liderança demonstradas pelo jovem príncipe português”. Uma leitura atenta das obras referidas confirma plenamente como o cidadão culto e estudioso, ciente da importância da História política, contribui com sentido pedagógico e capacidade crítica para a reflexão, de que tanto está carenciada uma sociedade que se deseja esclarecida e madura – em lugar dos tempos de imediatismo e de superficialidade. A História política tem de ser valorizada, não apenas na dimensão historiográfica, mas também no campo das ideias. Essa era uma convicção clara que sempre encontrei no estudioso.

Diogo Freitas do AmaralComo homem de causas, como homem de cultura, empenhou-se ativamente pela cultura da paz, pela defesa e salvaguarda dos direitos fundamentais

Já referi a anglofilia de Diogo Freitas do Amaral, que levava, nestes últimos tempos, à amargura pelo que via na evolução dos acontecimentos ligados ao “Brexit”, no qual ninguém se entende, contrariando um proverbial “british common sense”, que tanto admirava. Para além de ser um cultor exemplar do “Direito Administrativo”, na senda de Marcelo Caetano, com novas perspetivas científicas e pedagógicas abertas, tornou-se um exemplar pedagogo da “História das Ideias Políticas”, sobre que também muito falámos. Na ”História do Pensamento Político Ocidental”, de Thomas Morus a Montesquieu, até Burke e Tocqueville, chegando nos nossos dias a Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin ou Jacques Maritain o que o preocupa é a compreensão da democracia como realidade dinâmica, em permanente transformação, num sentido reformista, com instituições mediadoras, capazes de garantir a representação e a participação dos cidadãos. Leia-se, aliás, o “Manual de Introdução à Política” (2014), onde as ameaças sobre democracia estão evidenciadas, com uma preocupação especial com a verdade e a justiça. E não esquecemos que foi por proposta do CDS que a Constituição da República refere expressamente no seu articulado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como garantia de um Estado de Direito e de direitos. As três revoluções, inglesa, americana e francesa, tinham de ser vistas pelo autor articuladas entre si, no contexto do pluralismo e da separação e interdependência de poderes. E o “New Deal” de Franklin D. Roosevelt permitiu às economias mistas modernas dar resposta às incapacidades do mercado e às incapacidades da intervenção do Estado. As encíclicas de João Paulo II, Bento XVI e do Papa Francisco sobre a idolatria do mercado, sobre a “economia que mata” e sobre os desafios ligados ao meio ambiente mereceram, assim, especial atenção ao cidadão preocupado com a emergência de democracias ditas iliberais, que considerava chocantes contradições nos termos. Como homem de causas, como homem de cultura, empenhou-se ativamente pela cultura da paz, pela defesa e salvaguarda dos direitos fundamentais e, para referir um dos seus últimos combates empenhou-se em considerar a defesa do património cultural como um dever fundamental de uma sociedade mais humana e respeitadora da sua memória. Deixar ao abandono a herança e a memória das gerações que nos antecederam é destruir o carácter e a identidade, como realidade abertas, não do passado, mas do presente e do futuro. O património material e imaterial, a natureza e as paisagens, o mundo digital e a criação contemporânea exigem a nossa responsabilidade. Diogo Freitas do Amaral ensinou-nos a não baixar os braços.


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