• +351 217 214 129
  • This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

Prémio Fé e Liberdade 2019 João Alberto Pinto Basto

O Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica confere hoje o prémio Fé e Liberdade a uma grande figura do associativismo empresarial católico.

1. Oriundo de uma família católica, educado pelos jesuítas no Colégio das Caldinhas, herdeiro de um nome de notável tradição empresarial, João Alberto Pinto Basto dis- tinguiu-se como católico e como empresário.

Ainda estudante de Medicina em Lis- boa fez parte da Juventude Universitária Católica, de que foi presidente na sua Fa- culdade, tendo-se também envolvido em várias iniciativas católicas, dando assim público testemunho da sua fé, de forma clara e aberta. Acompanhou o percurso de seu Pai, como colaborador de Mons. João Evangelista Ribeiro Jorge no lançamento e desenvolvimento da União Cristã de In- dustriais e Dirigentes do Trabalho, tomando parte nos seus encontros de reflexão.

Foi precisamente Mons. João Evangelista Ribeiro Jorge, fundador da UCIDT, que o IEP distinguiu com o Prémio Fé e Liberdade, na sua primeira edição de 2012.

João Alberto Pinto Basto herdou de seu Pai a responsabilidade de direcção empresarial, mas também os valores pelos quais orientou a sua actuação. Presidiu à administração da Vista Alegre (1980-1996), em que trabalhou (1958-1963) e de que foi administrador por largos anos (1966-1979), dando continuidade renovada a uma das mais antigas e tradicionais marcas empre- sariais portuguesas.

Quando da abertura da banca ao sector privado, José Alberto Pinto Basto empenhou- -se, ao lado de Jorge Jardim Gonçalves, na construção do Banco Comercial Português, que viria a transformar-se no maior ban- co privado português, de cujo Conselho Superior seria Vice-Presidente por mais de duas décadas (1985-2006). Contribuiu desse modo, de forma decisiva, para o desenvolvimento da liberdade económica com responsabilidade social no nosso país.

2. Foi nessa qualidade de católico e de empresário, lembrado seguramente do exemplo de seu Pai, que João Alberto Pinto Basto se lançou, em 1995, no renascimento do associativismo empresarial católico, fun- dando a ACEGE, de que viria a ser primeiro presidente por 15 longos anos, até 2010. Foi secundado nesse esforço por uma plêiade de jovens gestores católicos, e apoiado por outros jovens e dinâmicos católicos, que rapidamente imprimiram ao movimento um ritmo de afirmação e de prestígio, que tornaram a ACEGE numa referência incontornável da vida empresarial portuguesa.

As conferências da ACEGE, precedidas da missa na Igreja de S. Nicolau, rapidamen- te passaram a ser frequentadas por dezenas e dezenas de gestores católicos, reunindo várias gerações de empresários, alguns dos quais oriundos da antiga UCIDT. Por elas passaram reputados nomes da economia portuguesa, da Igreja e da academia, quer nacionais, quer estrangeiros. O número de aderentes cresceu com as actividades da ACEGE, atingindo os 13 núcleos regionais e cerca de mil associados em finais da primeira década do século XXI.

Bem depressa a ACEGE começou a pro- mover os seus Congressos nacionais, abertos a outros sectores da sociedade portuguesa, amplamente participados. Pelo Centro Cultural de Belém, pelas instalações da UCP - para recordar apenas alguns - passaram centenas de congressistas ocupando-se da missão e valores dos empresários e gestores católicos.

Desde cedo, a ACEGE estabeleceu rela- ções com a UNIAPAC, conferindo dimensão internacional ao seu movimento, e promo- vendo nos países de língua portuguesa o aparecimento de iniciativas congéneres.

3. Momento bem alto da vida da ACEGE, sob o seu mandato presidencial, foi cer- tamente a assinatura do Código de Ética dos Empresários e Gestores, apresentado à discussão pública em 2004, aprovado no Congresso, e solenemente assinado num almoço do Hotel Tivoli, em 2005, por mais de uma centena de empresários, entre os quais se encontravam grandes nomes do empresariado português. A ACEGE constituía-se, desse modo, como fermento ético da vida económica portuguesa, orientado pelos valores cristãos.

Devedor de uma visão cristã e humanista da empresa, o Código de Ética assume o amor, centro da ética cristã, como critério de liderança e gestão empresarial, e entende a empresa como comunidade humana e um bem social inestimável, cuja sustentabilidade compete ao líder empresarial proteger. De- fendendo a economia de mercado, pretende uma sua regulação que defenda a iniciativa privada, o direito de propriedade e a inclusão dos marginalizados, com o aproveitamento máximo de todos os recursos disponíveis. A procura de maior rentabilidade deve conjugar-se com a defesa do homem. Reco- nhece o trabalho como factor de realização pessoal e de progresso económico e social, o que obriga à procura da excelência no trabalho, à defesa dos colaboradores na empresa, respeitando-os, oferecendo-lhes condições de trabalho, oportunidades de for- mação e uma remuneração justa. O respeito pelos princípios da economia de mercado, implicam a defesa de uma concorrência leal e honrada, o combate à corrupção e a promoção da justiça social nas decisões de investimento. A transparência na empresa implica a recusa dos abusos de poder, a protecção dos mais fracos, a verdade na publicidade e no marketing, o respeito das condições contratuais. O relacionamento com o Estado deve ser exigente, indepen- dente e leal, combatendo a fraude fiscal e a ilegalidade. A solidariedade com a sociedade, e a responsabilidade social, devem ter em conta os interesses da comunidade e o res- peito pela natureza.

Foi este o legado de João Alberto Pinto Basto aos associados da ACEGE e a todos os empresários portugueses.

4. A ACEGE não descurava a sua parceria com as universidades, a quem rapida- mente soube solicitar o contributo de estudos sobre temas que considerava relevantes para a renovação da sociedade portuguesa. O Instituto de Estudos Políticos esteve entre os primeiros parceiros da ACEGE, para a qual realizou importantes estudos que veio a publicar, designadamente sobre Famílias e Políticas Públicas e sobre a Riqueza e Pobreza.

5. João Alberto Pinto Basto foi a gran- de figura cimeira e tutelar de todo este movimento de iniciativas, sabendo mobilizar a sabedoria dos mais antigos e a energia dos mais novos, envolvendo em dinâmicas parcerias outras instituições ca- tólicas ou de inspiração cristã, potenciando esforços e resultados. Deixou a marca da sua fé e do seu amor à liberdade em toda a sua actividade.

Ao apontá-lo hoje como exemplo à juven- tude, o IEP está seguramente a agradecer- -lhe tudo o que fez pela promoção da fé e da liberdade, mas está também a prestar homenagem à ACEGE que fundou e di- rigiu, que dá continuidade ao seu legado de forma persistente, prestando assim a maior homenagem que se pode tributar a um fundador.

Peço, Senhor Vice-Reitor, que entregue, por todos nós, a João Alberto Pinto Basto, como testemunho da nossa admiração e gratidão, o Prémio Fé e Liberdade de 2019.


Adriano Moreira

Adriano Moreira

Presidente do Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa

O século XX teve, nas duas guerras que foram chamadas mundiais, os dois acontecimentos que avisaram da deriva para o Outono Ocidental, sem bússola confiável, em que nos encontramos.

O século XX teve, nas duas guerras que foram chamadas mundiais, os dois acontecimentos que avisaram da deriva para o Outono Oci- dental, sem bússola confiável, em que nos encontramos. Nos dois casos, quer no conflito de 1914-1918, quer no conflito de 1939-1945, os EUA foram determinantes para a vitória, mas não pode esquecer-se que nos textos dos Tratados finais, está a distinção entre aliados e associados. Os EUA assumiram esta identificação última. Todavia, nas duas guerras, onde a sua intervenção foi determinante, para a vitória, também nos dois casos foi decisiva para a mudança da estrutura política da Europa, acompanhada da definição, então fortalecida, do Ocidente. De facto, foi o Presidente Woodrow Wilson, moderando os rigores de Clemenceau, que implantou o modelo “Estado Nacional” como elemento essencial da unidade europeia, extinguindo os Impérios: Alemão, AustroHúngaro, Turco, e Russo, para, finalmente, os EUA não entrarem na Sociedade das Nações. Esta definição não apagou a recordação europeia da “belle époque”, a qual, nota Jacques Barzun, “deve-se aos grandes sucessos artísticos da Década Cubista e aos espíritos extraordinários que promoveram a reforma social e forçaram uma reviravolta política que modelou a conceção atual do Estado para todo o Ocidente”: na sua observação agenda Wells, Chesterton, Belloc e Shaw. Mas a chamada “reviravolta” nas sedes políticas europeias, não extinguiu, depois da paz da guerra de 1914-1918, o facto europeu de “La main mise sur le monde”, que o famoso Raymond Aron diagnosticou deste modo: “o impulso propriamente político parece mais forte do que as motivações económicas. A ambição de grandeza e de glória que animava os governos pesam mais sobre o decurso dos acontecimentos, do que a influência mais ou menos camuflada das sociedades anónimas”. Anatole France pregava no deserto quando, já em 1905, se manifestava contra o que chamou “la folie coloniale”. A Europa, parecendo tratar o seu Império Colonial Euromundista como destinado a ser ignorado pela história do futuro, movimentou-se no sentido de aprofundar a democracia, mas sem conseguir impedir o crescimento dos regimes autoritários: com Horty na Hungria (1920, Riviera em Espanha, e Mustafa Kemal na Turquia (1923), Pilsudski na Polónia (1926), Salazar em Portugal (1928). A crise dos anos 30 abalou o sonho do regresso à vida habitual, atingindo profundamente a Europa e a evolução para a democracia, com exceção da França e do Reino Unido, aproximando-se da tragédia totalitária: o nazismo na Alemanha de Hitler (30 de janeiro de 1933), num quadro em que se destacaram, sucessivamente, o General Metachas na Grécia (1936), o Coronel Beck na Polónia (1935), Dolfuss na Áustria (1933), e, na fronteira peninsular portuguesa, a Guerra Civil em Espanha, com as Forças Armadas chefiadas pelo General Franco, que durou de 1936 a 1939, como que um prefácio à Guerra Mundial que se aproximava. Os esforços que Aristides Briand pela França, e Gustav Streseman pela Alemanha, tinham desenvolvido para consagrar a Paz pelo Pacto de Locarno, no qual a Alemanha aceitara a fronteira de 1918, fora uma sombra que diminuíra a visibilidade do revisionismo de Hitler, que conduziu à tragédia de 1939-1945. De novo os EUA, depois de atacados traiçoeiramente pelos japoneses em Pearl Harbor, tendo já assinado a Carta do Atlântico com Churchill em Agosto de 1941, vieram, por decisão do Presidente Roosevelt, ajudar a vencer a guerra, e pela segunda vez num século, desenhar o projeto de governança mundial com a criação da ONU, e pondo um ponto final na legitimidade do Império Colonial Euromundista, lembrando a advertência de Anatole France. A vitória contra o nazismo de Hitler, despertou a ameaça da antiga aliada soviética, primeiro de Hitler e depois dos

A Paz Mundial (nos 70 Anos da NATO)

ocidentais, com o seu projeto de subverter a Utopia Europeia do “mundo único” e da “terra casa comum dos homens”. Desta vez, foi apenas conseguido um equilíbrio de “Metades”, com duas Europas, duas Alemanhas, duas Cidades de Berlim, e com as guerras que se multiplicaram no desfazer do Império Colonial Euromundista, em que Portugal teve a sua parte. O jornal Le Combat, de 8 de Maio de 1945, referiu-se à paz nestes termos: “esta imensa alegria coberta de lágrimas”. As lágrimas eram causadas pelo balanço monstruoso do desastre que incluía, só na Europa, 30 milhões de mortos, as destruições de cidades, bairros inteiros desaparecidos em Londres, a miséria dos vivos, mas rapidamente crescendo a esperança de um novo futuro que vencesse o desespero. O capítulo que se iniciou teria de incluir uma longa introdução que foi chamada “Guerra Fria”. Antes do fim da guerra, nas Conferências de Teerão (novembro de 1943) Yalta (fevereiro de 1945), Roosevelt, Churchill, e Estaline, tinham procurado encontrar um acordo sobre o futuro do mundo e, em primeiro lugar da Europa, mas as ambições da União Soviética levaram a que pedissem a Churchill, embora já vencido nas eleições no Reino Unido, que chamasse os europeus da democracia a reconhecer que os soviéticos, em todos os países que as suas tropas tinham ocupado – Polónia, Checoslováquia, Bulgária, Hungria, Roménia, Jugoslávia, Albânia – tinham assumido o poder. As palavras, de 5 de março de 1946, foram estas: “De Stettin no Báltico a Trieste no Adriático, uma cortina de ferro caiu sobre o continente”. Nessa data da certidão de debilidade da Europa democrática, os EUA assumiram que na unidade mais vasta, o Ocidente de que eram a parte mais jovem e mais forte, exigia uma decidida intervenção, de recons- trução e autenticidade, tendo em vista os

A Europa, parecendo tratar o seu Império Colonial Euromundista como destinado a ser ignorado pela história do futuro, movimentou- se no sentido de aprofundar a democracia, mas sem conseguir impedir o crescimento dos regimes autoritários

princípios que inscreveram na Carta da ONU, e que diziam respeito a todos os povos da terra. Logo em 12 de março de 1947, o Presidente Truman lança o apelo geral no sentido de “conter o comunismo”, e em 5 de junho seguinte o General Marshall anunciou ajuda financeira a todos os países europeus, um desafio a que Andrei Jdanov, em setembro, respondeu que o mundo ficava dividido em “dois blocos irreconciliáveis”. O projeto de ocidentalização do mundo, que Portugal iniciara, e que a Carta da ONU transformara num projeto que, na linguagem posterior de Mandela, seria um “Arco Íris” de harmonia, estava em suspenso, preguntando a historiadores se “a era europeia chegara ao fim”. A notável geração de Estadistas ocidentais que enfrentou a crise sem precedentes históricos, desenvolveu um projeto de segurança, traduzido na organização do Tratado do Atlântico Norte, desencadeou um processo de recuperação dos Estados arruinados pela guerra, que seria semeado de apelidados milagres, enquanto o “espaço soviético” se afundava interiormente, até à queda da “cortina de ferro” que Churchill denunciara. Tinham passado quatro anos sobre o suicídio de Hitler (1945), quando o ano de 1949 ficou assinalado por factos fundamentais: assinatura do Pacto Atlântico em 4 de Abril, criação da República Federal Alemã em 23 de maio, Mao Tsé-Tung funda a República Popular da China, e em 7 de outubro é anunciada a criação da República Democrática Alemã. Hoje podemos reconhecer que foi a “segurança” que permitiu a recuperação de cada Estado ocidental que a guerra destruíra e o projeto soviético ameaçava, e ao mesmo tempo fez aos europeus compreender que a “unidade europeia”, que havia século

 A Paz Mundial (nos 70 Anos da NATO)

parecia uma “utopia política”, era o método que poderia colocar um ponto final na longa história dos conflitos internos. O Tratado do Atlântico Norte, que é uma aliança militar, geralmente conhecida como NATO, foi assinado, em 4 de abril de 1949, e no artigo 5.o definia que os seus Membros apoiam qualquer Membro sujeito a um ataque armado. Curiosamente, os historiadores fixam a consolidação da Aliança, sob liderança dos EUA, com o desafio da Guerra da Coreia e, depois, a rivalidade do Pacto de Varsóvia firmado em 1955. Não pode ignorar-se que a relação, tendente para hierarquizada, entre europeus e EUA, foi por vezes objeto de dúvidas sobre a capacidade de a Aliança responder com êxito a uma invasão soviética, sendo relevante a inquietação francesa que levou à sua tentativa de autonomia nuclear e afastamento da NATO por algum do tempo gaulista. O facto histórico é que a segurança foi o valor básico e fundamen tal com que a solidariedade dos 29 Membros A Paz Mundial (nos 70 Anos da NATO) europeus e americanos impediu a realização do pesadelo da rápida marcha dos soviéticos até ao Canal da Mancha. Entretanto, dando razão ao conceito de François Jacob, segundo o qual “ninguém pode adivinhar o trajeto que a História traçar. Nada está definitivamente jogado”, a Europa esmagada politicamente, e economicamente destruída, pela guerra, sob a inspiração de Jean Monnet, bom conhecedor dos falhados passados projetos da unidade europeia, e autoridade dos líderes democratas-cristãos Robert Schuman pela França, Konrad Adenauer pela Alemanha, e Gasperi pela Itália, com os seguros apoios dos EUA, conduziram ao chamado “milagre alemão”, ao “milagre italiano”, e, como os franceses preferem dizer, aos “trente Glorieuses” anos de crescimento contínuo desde 1945 até ao choque petrolífero de 1973, e início da grande crise mundial. Os militares que sustentaram a estratégia de segurança que permitiu os milagres, devem sentir-se recompensados, e os ocidentais agradecidos, com a redefinição da sua função depois da queda do Muro de Berlim, e desmoronamento do Bloco do Leste em 1980, que podemos considerar assumido pela criação do Conselho da NATO – Rússia, depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, todos em pé de igualdade. Mas porque a vida, como ensinara Ortega, é “antecipação e projeto”, a circunstância do nosso tempo desafia a redefinição da função, se alguma, da NATO para responder à mudada circunstância. Já não se trata do sovietismo que morreu por factos internos em que a NATO participou sobretudo por existir, no sentido mais pleno da palavra. Mas a circunstância atual levou Samuel Huntington, Conselheiro do Pentágono, a prognosticar que (1993) o paradigma da política externa seria agora “A Clash of Civilizations”, e que Hans Küng, o organizador da Fundação da Ética Mundial, propôs corrigir no sentido de que “não há paz mundial sem paz religiosa”. Por isso, dedicado profundamente ao estudo das três religiões mais importantes – cristianismo, judaísmo, e islamismo – fez esta síntese: “não há paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não há diálogo entre as religiões sem pesquisa de base entre as religiões”. Não parece que haja contradição entre a conclusão do académico e estadista Huntington e a do Professor Padre Küng, exceto se não se admitir que a religião é parcela fundamental das conceções culturais diferenciadas. E nesta data, em que a sovietismo anda nas terras ocidentais mais substituído pelos populismos, os mais inquietantes destes são os dirigidos por “eucratas” já no poder, ou em busca dele, e até subitamente o Irão tende para ser identificado como “o outro” que ocupa parte do vazio aberto pela queda do sovietismo. Outros emergentes desafiantes se perfilam, incluindo a ambição da China recuperar a soberania nas águas que há séculos deixou de navegar, a nova Rússia a querer fazer respeitar uma fronteira de interesses mais vasta que a fronteira geográfica, ou, para ser breve, o antigo chamado “terceiro mundo” a multiplicar as atitu- des agressivas. Até à queda do sovietismo Portugal foi sempre membro leal da NATO, convidado pelos EUA e pelo Reino Unido, sobretudo pelo poder funcional derivado dos Açores, sem impedimento do regime, citando-se por isso um comentário (janeiro de 1951) do General Eisenhower, que seria o seguinte: “de todos os estadistas europeus com quem conversei, Salazar pareceu-me o mais lúcido e avisado”. A gestão das relações com os EUA foi prudente e acertada, o cuidado no sentido de não ser esquecido que a Península tinha dois Estados foi observado, Portugal participou com êxito nas missões que foram alargando a projeção internacional da NATO, e respondeu com honra, sustentada pelas suas Forças Armadas, às exigências do Conceito Estratégico aprovado em 2010, em Lisboa: defesa coletiva, gestão de crises, e segurança cooperativa. 1

Acontece que, nesta data da celebração dos 70 anos da NATO, a circunstância, uma variável cuja identificação marcou o pensamento de Ortega, obriga a séria meditação sobre a resposta que a realidade ocidental, com o valor do atlantismo a ligar as parcelas União Europeia e EUA no Atlântico Norte, dará à mudança de desafios, que a NATO não poderá omitir. Em primeiro lugar, as questões internas da União Europeia a que o Cordão de Segurança da NATO deu viabilidade. Em primeiro lugar o conceito estratégico que venha a ser o da União, se algum, quando o quadro partidário, a que dá expressão o Parlamento Europeu, tem uma complexidade que faz esquecer a definição ideológica da fundação, sem até agora revelar estadistas da estatura dos fundadores. Não podendo ignorar-se que o Parlamento é o único órgão eleito, basta pensar que em França, na eleição de 29 de maio corrente, apareceram trinta e quatro listas para designar 79 eurodeputados, sobre os 751 que estarão em Estrasburgo, se o Reino Unido também comparecer. Neste pluralismo destaca-se o fenómeno dos “populismos”, em busca do “verdadeiro povo”, com destaque para o Grupo Europeu das Nações e das Liberdades (ENL), a limitação das liberdades na Áustria, o Vlaams Beling da Bélgica, a Liga Italiana, os verdadeiros Finlandeses, os Polacos da Lei e Justiça (PiS), os eucráticos do chamado UKIP, o movimento alemão saudoso do nacional-socialismo, e, sem esgotar a enumeração o partido de Jean- Marie Le Pen, quando a autoridade da Chanceler da Alemanha enfraquece, e o fugaz prestígio do Presi- dente Macron vai desaparecendo. Jérôme Fouquet conclui que “hoje toda a gente luta por uma Europa diferente, transformada do interior. Mas, entre os principais candidatos ninguém já propõe o salto federal... todos falam de ecologia e desejam uma Europa que proteja, uma Europa mais social”. As linhas profundas de clivagem são reduzidas, temos antes umas cinquenta variedades de cinzento. Entre nós, o sereno e profundo observador que é Viriato Soromenho-Marques (Depois da Queda, a União Europeia entre o reerguer e a fragmentação, 2019) conclui: “Insisto, a UE está à beira de um declive para onde resvalará se o presente rumo não for alterado, daí resultando uma fragmentação de consequências negativas, imprevisíveis, mas com toda a certeza de enorme impacto, não só para o velho Continente, mas para a ordem global”.

Acontece que a nova circunstância revelou internamente um conjunto de desafios que nenhum Estado europeu pode enfrentar isolado – o ambiente, as migrações, a crise económica e financeira, o euro a favorecer o modelo de Diretório inseguramente assumido pela colaboração França-Alemanha, a multiplicação dos populismos, o desarrumado Brexit do Reino Unido –, e o desencontro entre as democracias ocidentais com meioséculo de ensaio do método cooperativo, em face dos Estados vindos da derrocada soviética com meio século de luta para recuperar a soberania – tudo com a consequência de generalizado sentimento da necessidade de reforma política, mas sem clareza de projetos para além do amparo semântico dos possíveis sentidos do Federalismo ou da União reinventada. Mas, como que repensando o ambiente que rodeou o início da União, a mudança radical da problemática da segurança. É quando os factos exigem assumir o desafio da segurança no Atlântico Sul, que dá relevo ao “Triângulo Estratégico Português”, que o ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque (2001) mostrou que os progressos da ciência e da técnica permitem que o fraco atinja o forte, que o populismo invade o sistema político americano na linha da “traição das elites”, o que levou o jornalista Sylvain Cypel a ter considerado o “trumpismo” como um “estilo paranóico”, por ter trocado o conceito histórico americano de que “os EUA são a maior Nação do Mundo”, pela versão da “excecionalidade” dos EUA, e, acrescentemos, da convicção pessoal do Presidente do seu excecional relevo histórico. As suas intervenções – Israel, Coreia do Norte, Irão, Tratado de Paris, financiamento da NATO, intervenção pregadora no Reino Unido, mostram que o valor do “atlantismo” no todo “Ocidente” tende para ser menorizado pelo ressurgir do antigo conceito americano de que a marcha em direção ao Pacífico é o destino manifesto da Nação.

Depois da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, e das suas ambições sobre a Ucrânia, ficaram afetados os valores, princípios, e objetivos acordados em 1997 pela NATO-Rússia Founding Act, e pela Declaração de Roma de 2002: é mútua a acusação da ambição expansionista, dando a Rússia especial relevo à intervenção na sua reclamada espera de influência, designadamente o facto de os europeus assumirem a perspetiva de integrar a Ucrânia e a Geórgia, assim como as intervenções ocidentais no Kosovo, no Iraque, e na Líbia.

Em resumo, se Trump prefere lidar com a pluralidade de Estados europeus isoladamente, a União Soviética não aprecia que o antigo espaço da sua meia

Europa se tenha integrado na União. A circunstância tende para projetar uma imagem de triângulo em competição, China Rússia, EUA. Nesta imagem a União parece dar prioridade às questões económicas, descurando averiguar e assumir um papel no plano geoestratégico. De novo a segurança é desafiada para garantir em primeiro lugar imunidade razoável em relação aos efeitos da competição no triângulo EUA-Rússia-China, e ganhar uma respeitabilidade suficiente para ter voz na renovação da governança mundial, que evite a catástrofe que será a falência da substituição do hard power a que recorre o populismo de Trump, pelo soft power que Obama tentou, e pelo smart power que a senhora Clinton não veio a poder usar. A circunstância que permitiu organizar a segurança indispensável à recuperação depois da II Guerra Mundial, implicou uma recuperação da estrutura política, e colocar o acento tónico na economia. A alteração da circunstância exige agora que a geopolítica intervenha no sentido, pelo menos, de enfrentar, em união, a resposta aos desafios que, como disse, nenhum país europeu pode enfrentar isolado. E por isso começou lucidamente a incluir na celebração dos 70 anos da NATO, a enumeração dos desafios estratégicos da nova circunstância. O teor da recente eleição para o Parlamento Europeu mostrou que estiveram mais presentes os problemas internos dos Estados, do que os da interdependência europeia. O que chama a atenção para o enfraquecimento do espírito dos fundadores, que responderam, com os povos, ao apelo de Churchill: “que a Europa se erga”. O desastre da guerra, e a ameaça soviética, permitiram organizar a segurança, e dar firmeza a um conceito solidário do Ocidente, com o Atlantismo a cimentar o esforço. Nesta data, a competição multipolar exige não apenas a segurança militar, mas fortalecer o conceito de modo a responder às políticas do Triângulo em competição, EUA, China, e Rússia, cada uma evidenciando que a secundarização da União Europeia lhe é conveniente. Verificar que sair da União é difícil, está demonstrado pelo Brexit do Reino Unido, e que enfraquecer a solidariedade interna, apelando à memória do passado das soberanias irrepetível, ou aos populismos de um imaginado futuro entregue ou recebido do “verdadeiro povo”, ficou visível: não se trata realmente de formulação de um novo regime político, mas de uma crise. Uma crise na qual o fator mais inesperado é o do populismo “trumpista” que afeta a solidariedade ocidental e semeia riscos globais. Não reconhecendo que a “crise” tem uma componente exterior, a que os EUA não escapam, que é a reação contra o globalismo da secular ocidentalização do mundo, com o passivo que nos EUA abrange a liquidação dos nativos em que se destacam os iroqueses, com a submissão da antiga área colonial aos regimes extrativos, às discriminações étnicas, culturais, e religiosas; às guerras de libertação. O que inclui a importância do conflito com o islamismo, tão profundamente estudado por Hans Küng, o organizador da

Fundação Ética Mundial, para evitar que tivesse comprovação a previsão de Huntington (1993), ao vaticinar “A Clash of Civilizations”, com valores religiosos inscritos na metodologia terrorista. A crise da circunstância tem levado a discutir a circunstância de um Espírito europeu. É um tema que ganha urgência, se o espírito da NATO, que salvaguardou o espaço da restauração da Europa, não for defendido e reforçado, o que implica corrigir o desvio da liderança americana: é a fidelidade à, até hoje, utopia da ONU, exigente de garantir “um mundo único”, isto é, sem guerras, e “a terra casa comum dos homens”.

1 Ver a síntese sobre “Portugal e a NATO – Breve ponto da situação”, do Tenente- Coronel José Brandão Ferreira, in Revista Militar, n.o 2607, abril de 2019.


Mário Pinto

Mário Pinto

Professor Catedrático Jubilado, Universidade Católica Portuguesa; Presidente do Conselho Editorial Nova Cidadania

A Constituição portuguesa colocou num novo patamar toda esta questão, ao submeter expressamente o Estado ao princípio da subsidiariedade, tanto na sua organização como no seu funcionamento.

1. No discurso político corrente entre nós, inclusive de membros de órgãos de soberania no exercício das suas funções, é frequente a invocação da democracia, tout court, como argumento de justificação, ou de crítica, de políticas públicas em alternativa. Ora, e como é sabido, houve e há, ainda hoje, diferentes conceitos de democracia, alguns inimigos entre si. Basta recordar a oposição revolucionária das chamadas “democracias populares” (de Leste) às “democracias liberais” (do Ocidente), em especial durante o longo período da guerra fria. Esta oposição ainda não morreu, e até parece capaz de se querer perpetuar por via de novas “democracias de opinião”, como a da “democracia bolivariana”, na Venezuela. Entretanto, nós temos bem definida, na Constituição Política da República, qual é a concepção da democracia portuguesa. Uma normal educação para a cidadania, exigível sobretudo aos políticos, devia evitar a invocação da democracia em sentidos divergentes do sentido constitucional.

2. Um importante facto político recente, entre nós, comprova bem a questão apontada. Em princípios do ano de 2018, saiu um livro, que foi muito celebrado pela comunicação social e veio a determinar um processo legislativo para uma nova lei do SNS, da autoria de António Arnaud e João Semedo, que se intitulou assim: «Salvar o SNS. Uma nova Lei de Bases da Saúde para defender a Democracia». Ora, neste livro, a necessidade de um novo SNS que exclua a participação de quaisquer parcerias privadas (portanto exclusivamente estatal) é justificado pelo fim da defesa da democracia. A questão que então se levanta é esta: qual é a democracia que os autores assim pretendem defender? A democracia constitucional portuguesa não é seguramente, porque a Constituição não caracteriza a nossa democracia com monopólios de Estado e com a exclusão de parcerias privadas nos serviços públicos do Estado social.

3. Diz assim a Constituição, logo no artigo 1.o: «Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana». E imediatamente, no artigo 2.o, define o Estado de Direito Democrático como baseado no “pluralismo democrático” [e não no “centralismo democrático”]; no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais [e não na exclusão dos cidadãos de participarem nos serviços públicos estatais]; «visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa».

4. O estimado leitor leu bem? Reparou que a definição constitucional do art. 2.o termina dizendo que a democracia portuguesa (que toda a gente sabe é uma democracia representativa, como todas a democracias modernas), além de ser integral (isto é, de abranger as várias esferas da vida pública, designadamente económica, social e cultural), «visa o aprofundamento da democracia participativa»?

Os partidos da 'geringonça' não cumprem a democracia

Nunca ouviu falar da democracia participativa? Mas olhe que logo adiante, quando a Constituição enuncia e ordena quais são as «tarefas fundamentais do Estado», ela diz que o Estado é expressamente obrigado a «Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais» (al c) do art. 9.o). Não é claro que o Estado deve incentivar a participação dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais? Em vez de os excluir?

5. Mas há mais: no sistema constitucional português, a questão da democracia participativa ganha um sentido muito mais rico e um alcance muito mais amplo do que aquele que já lhe pode ser atribuído por assim dizer numa boa teoria geral da democracia representativa ocidental, de cepa liberal e com base nesta última nossa citação do art. 9.o (que impõe ao Estado a obrigação de assegurar e incentivar a participação dos cidadãos). É que a Constituição portuguesa colocou num novo patamar toda esta questão, ao submeter expressamente o Estado ao princípio da subsidiariedade, tanto na sua organização como no seu funcionamento. Nestes termos: «O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento [...] os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da Administração Pública».

A democracia representativa e a democracia participativa têm sido conflituais, e compreende-se; mas, se pensarmos esta relação na base do princípio da subsidiariedade, ela transforma-se numa harmonização equilibrada e solidária. Porque, se o Estado bem observar o princípio da subsidiariedade, nunca intervém em conflito com a iniciativa privada

6. Sistematizando bem estes princípios constitucionais, como é devido fazer para a sua boa observância, a articulação entre a democracia participativa e o princípio da subsidiariedade do Estado constitui uma nova concepção da democracia. Historicamente, a democracia representativa e a democracia participativa têm sido conflituais, e compreende-se; mas, se pensarmos esta relação na base do princípio da subsidiariedade, ela transforma-se numa harmonização equilibrada e solidária. Porque, se o Estado bem observar o princípio da subsidiariedade, nunca intervém em conflito com a iniciativa privada; e, ao contrário, intervém sempre em subsídio da iniciativa privada, apenas a substituindo no caso desta ser incapaz ainda que com subsídios. Assim, a iniciativa do Estado e a iniciativa da Sociedade Civil são sempre harmonizadas pelo princípio da sub- sidiariedade, e cooperam entre si tão ligadas como as duas faces de uma mesma moeda.

7. Não se sabe bem o que é princípio da subsidiariedade? Ora essa, sabe-se muito bem. Desde 1931 que uma voz mundialmente conhecida (do Papa Pio XI) o definiu paradigmaticamente, na intenção de combater a ascensão dos totalitarismos do fascismo italiano, do comunismo estalinista e do nazismo alemão, nestes termos: «Permanece contudo imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem conseguir com a sua própria iniciativa e capacidade, para o confiar à colectividade, assim também constitui uma injustiça, um grave dano, uma perturbação da boa ordem social, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podem conseguir.

O fim natural da sociedade e da acção social é subsidiar os seus membros, não é destruí-los nem absorvê-los» (cf. Encíclica social Quadragesimo Anno). Em continuidade, uma outra voz mundialmente conhecida confirmou mais recentemente a defesa deste princípio: o Papa João Paulo II, na Encíclica Centesimus annus, escreveu: «Intervindo directamente, e quando irresponsabiliza a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os cidadãos, e com um acréscimo enorme de despesas.»

8. Note-se que, tanto quanto sabemos, a plena consagração expressa do princípio da subsidiariedade no texto constitucional português é uma novidade mundial, apenas com o precedente da sua aprovação internacional no Tratado da União Europeia. Devemos esta grandíssima novidade às negociações partidárias que precederam a revisão constitucional de 1997, conduzidas decisivamente por Marcelo Rebelo de Sousa, então líder do PSD, e por António Vitorino, em representação do PS. Mais recentemen- te, por uma revisão constitucional de 2001, a Itália também acolheu expressamente o princípio da subsidiariedade do Estado na sua Constituição política.

Para aqueles que pensam, como é o nosso caso, que o princípio da subsidiariedade do Estado é o grande princípio fundamento da “democratização da democracia” que baseará a revolução política do terceiro milénio, seria caso de algum nosso orgulho nacional, não se desse o caso de termos esquecido já por mais de vinte anos esta nossa histórica antecipação. Porque, de facto, não se tem ouvido falar, entre nós, do princípio da «subsidiariedade do Estado». Não, não se tem falado. E, pelo contrário, o que se tem ouvido repetidamente (em especial por parte de sindicalistas, políticos e governantes) é defender o oposto, isto é, a supletividade dos privados perante as iniciativas do Estado — designadamente no âmbito da acção social, da educação escolar, e do sistema nacional de saúde (recorde-se que o Primeiro Ministro socialista António Costa defendeu recentemente para a nova Lei de bases da saúde que os cidadãos só deviam poder protagonizar parcerias privadas com o SNS enquanto supletivos, excepcionais e temporários do Estado).

9. Conclui-se que é de facto verdade que, em matéria de subsidiariedade, e numa espécie de guerra do Estado contra a Sociedade Civil, do público contra o privado, lavra entre nós activamente uma política “oficiosa” de propaganda anti-constitucional. E é caso de perguntar: os nossos partidos e “media” (bem como outras honoráveis instâncias da nossa sociedade com responsabilidades de doutrina social), que justamente se consideram defensores da democracia constitucional, de raiz liberal, personalista, pluralista, participativa, económica, social e cultural, o que têm dito a isso? Se afinal não cobrem os déficites da educação para a cidadania na vida política, nem corrigem eficazmente as políticas centralistas e burocráticas, como as do Governo da “geringonça” que não cumpre a Constituição, com que é que então se gloriam?

Parece que o novo partido da Iniciativa Liberal vem representar outro vigor na defesa destes princípios constitucionais, mais democráticos porque mais participativo. Se assim for, é constitucionalmente bem-vindo. E por isso, de um modo ou de outro, vai ficar na nossa história.

10. Em conclusão: ainda mesmo nesta reflexão muito breve, a democracia do livro de Arnaud e Semedo, bem como a dos partidos da geringonça que concordam com Arnaud e Semedo aprovando uma nova lei do SNS na inclinação de um monopólio de Estado, revela-se diametralmente contrária à democracia “aprofundadamente participativa” que a Constituição expressamente impõe como devendo ser baseada na dignidade da pessoa humana, consequentemente nos pessoais direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, consequentemente pluralista, tudo isto por virtude da autêntica lei que rege a omeostase democrática do sistema socio-político, entre uma Sociedade Civil dignamente activa e um Estado subsidiário passiva e activamente subsidiário, isto é, a lei-princípio da subsidiariedade social e política.

11. Como nesta data (Setembro de 2019) estamos a terminar uma legislatura em que, não só pelo exemplo referido da nova lei do SNS, mas ainda por vários outros casos, designadamente na área da educação escolar e da economia, os partidos da “geringonça” que suportaram o Governo deram provas de seguir uma orientação democrática anti-constitucional (porque centralista-burocrática, anti-pluralista e anti-participativa), é caso para deixar aqui uma avaliação negativa desta governação, que desrespeita a Constituição nos seus «Princípios Fundamentais» — «Princípios Fundamentais» é exactamente a rubrica do primeiro apartado da Constituição onde se contêm as disposições normativas que acima foram citadas.

12. Sim, bem sabemos que a economia e o emprego não estiveram mal, durante a legislatura. Mas, tirante o controlo financeiro do Doutor Centeno, que faz recordar os antigos méritos do Doutor Salazar nas Finanças dos anos trinta, a economia e o emprego não foram obra deste Governo, que a bem dizer nem teve Ministro da Economia. O andamento da economia e do emprego (e, por consequência, da receita fiscal, que aliás recebeu alguma ajuda de agravamentos), foi um feito da Sociedade Civil portuguesa e da conjuntura europeia e mundial.

Daquela Sociedade Civil que os partidos da geringonça acham que não deve participar no SNS. Nem no sistema educativo público. Nem em sectores importantes do tecido empresarial. Repita-se: tirante o controlo financista do Doutor Centeno, aliás pelas vias perversas da redução do investimento público e do aumento do endividamento do Estado, e beneficiando do “boom” do turismo e de juros mínimos (e agora já negativos) sobre a dívida, o saldo negativo deste governo foi o de, à custa da economia que não é obra sua, ter aumentado o centralismo do Estado, contra a Constituição, a favor (como aliás é típico) de um populismo demagógico eleitoralista e da degradação das instituições.

13. Ora, atenção! Esta questão substancialmente democrática, que defronta o centralismo de Estado e as suas políticas populistas e clientelares, não é simplesmente teórica. É muito prática e é muito séria. Porque, em vários casos, a história mostra bem que o eleitorado pode cair em “vender” a sua primogenitura por um prato de lentilhas.

(*) Este breve ensaio reproduz, com algumas alterações, uma primeira publicação no jornal on line Observador.


Please publish modules in offcanvas position.