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Churchill e a ordem internacional

John Owen IV

John Owen IV

Professor de Ciência Política, Universidade de Virginia

Conferência proferida na palestra-jantar Anual Winston Churchill, no Palácio da Cidadela de Cascais, a 20 de setembro de 2018, com a presença de sua Excelência o Presidente da República.

Tradução de Maria Cortesão Monteiro

Churchill e a ordem internacional

É uma honra estar neste lugar histórico, em tão distinta companhia, a marcar o início do novo ano académico desta instituição única – uma instituição que é importante não apenas para Portugal, mas para todo o mundo. Deixem-me co-meçar por agradecer aos meus anfitriões: Sua Excelência, Presidente Rebelo de Sousa; ao Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; aos vários patrocinadores deste evento; e em particular ao Professor João Carlos Espada, ao meu ex-colega em Virgínia, o Professor Bill Hasselberger, e à Daniela Nunes.

Esta é a minha primeira visita a Portugal, e a hospitalidade que todos nos têm demonstrado neste lindo país é algo que eu e a minha filha Alice nunca esqueceremos. Não sou certamente o primeiro visitante a questionar-se porque é que todos aqueles exploradores, homenageados em Belém, quiseram sair de Portugal – eu acho que têm cá tudo!

Distintos convidados, senhoras e senhores: das muitas décadas de discursos memoráveis de Winston Churchill, o discurso de que o mundo se lembra melhor é o seu discurso do ‘finest hour’, proferido durante a que-da da França – a 18 de Junho de 1940 – à Câmara dos Comuns, e mais tarde nesse dia, à BBC. É neste discurso que Churchill incita os seus compatriotas, de uma forma que mais ninguém conseguiria, a derrotar Hitler mesmo que a França não conseguisse fazê-lo, “Se conseguirmos fazer-lhe frente”, a Hitler, disse WSC, “toda a Europa pode ser livre e a vida do mundo pode avançar paravastas planícies solarengas.” WSC não estava a falar apenas da sobrevivência ou vitória britânica. Ele estava a falar de toda a Europa e de facto de todo o mundo – fosse a Alemanha Nazi derrotada.

Mas: o que é que Churchill queria dizer com “vastas planícies solarengas?” A frase é, claro, uma metáfora, possivelmente tirada de H.G. Wells. Mas que tipo de mundo ilustrava?

Esta noite, gostava de apresentar quatro pontos.

Primeiro, que WSC queria uma ordem internacional em que as democracias agissem de forma concertada para salvaguardar o seu próprio auto-governo.

Segundo, que com com a ordem ociden-tal pós-guerra ele obteve algo aproximado ao que queria.

Terceiro – que essa ordem ocidental – agora muito mais complexa e quase global – está actualmente em perigo, ameaçada por um novo semi-membro, a China auto-ritária, a partir do interior (pela sua própria deriva em direcção àquilo a que chamarei cosmopolitismo).

Quarto, a ordem internacional que te-mos tido desde 1945 merece ser salva – mas necessita bastante de reforma. Comecemos então o primeiro ponto– sobre o tipo de ordem que WSC queria. Em princípio, um certo número de ordens internacionais diferentes é possível. Podemos dispô-las numa espécie de espectro teórico. Num dos extremos está o mundo descrito pelo filósofo inglês do início da modernidade, Thomas Hobbes, no qual todos os países encontramnum estado de natureza, que é na verdade um estado de guerra. Neste mundo não é possível existir confiança, e cada estado deve armar-se face à possibilidade de guerra com todos os outros e, portanto, deve evitar tornar-sedependente de qual-quer outro país. Os estados podem formar alianças contra uma ameaça comum, mas estas alianças são temporárias e acabam assim que a ameaça comum desaparece. Neste mundo, a força faz o direito.

No outro extremo do espectro está um estado mundial, que é exactamente o que o seu nome indica: uma única autoridade com o monopólio do uso legítimo da força, com o poder para aplicaracordos entre povos, grupos, corporações. O mundo como um grande país. A isto chamamos utopismo.

WSC, como a maior parte das pessoas, queria uma ordem mundial situada algures entre estes dois extremos, hiperrealismo e utopismo. Isto porque WSC pensava nas ameaças estrangeiras não apenas em termos de proteger o território britânico de ser conquistado, mas de protecção da democracia britânica – as liberdades, o auto-governodo povo britânico. Por esta razão, ao contrário de muitos no seu próprio partido na década de 30, WSC era inflexível na posição de que nenhum acordo devia ser assinado com Hitler e o seu regime nazi – um regime que tinha derrubado a democracia na Alemanha e que faria o mesmo noutros países, se pudesse.

É portanto claro, acho, que WSC rejeitaria tanto um estado mundial como um estado de natureza hobbesiano, porque ambos os tipos de ordem global iriam eviscerar a democracia – no Reino Unido e em todo o lado. Noutras palavras, a democracia britânica apenas poderia sobreviver se outros países da Europa e outras regiões fossem também democráticos – nenhuma democracia é uma ilha – e isso, por sua vez, requeria um tipo particular de ordem internacional.

WSC queria uma ordem internacional em que as democracias agissem de forma concertada para salvaguardar o seu próprio auto-governo

Mas onde se situava este ponto do espectro? Onde podiam ser encontradas vastas planícies solarengas? Encontramos pistas noutros discursos de WSC. Nos anos 30, ele escreveu e falou inúmeras vezes sobre segurança colectiva: acerca de como a Liga das Nações, liderada por poderes democráticos, se devia unir na defesa face a ameaças fascistas. Em Agosto de 1941, assinou, juntamente com o Presidente americano Franklin Roosevelt, a Carta do Atlântico, visando uma ordem mundial melhor. Mas deixem-me passar para 1948, depois da vitória dos aliados, no início da Guerra Fria, quando WSC e outros enten-deram que a União Soviética de Estaline era uma séria ameaça à paz mundial e ao governo democrático. Churchill, aí fora do poder, afirmou o seguinte num Encontro Geral do Partido Conservador, no País de Gales em Outubro:

Ao olhar para o futuro do nosso país neste mudança de cenário do destino hu-mano, pressinto a existência de três gran-des círculos entre as nações livres e as democracias. Quase desejava ter aqui um quadro negro. Far-vos-ia um esquema... O primeiro círculo é para nós, naturalmente, a Commonwealth e o Império britânico, com tudo o que isso abrange. Depois há também os mundo falantes de inglês, no qual nós, o Canadá e os outros domínios britânicos e os Estados Unidos têm um papel tão impor-tante. E, finalmente, há a ainda a Europa Unida. Estes três grandiosos círculos são co-existentes e, se estiverem ligados, não há força ou combinação de forças que os possa derrubar ou até desafiá-los.

Aqui, WSC está, claro, a tentar ar-duamente defender que o Reino Unido, independentemente da sua fraqueza pós--guerra, permanecia fundamental para a ordem internacional, pelo facto de ser o único país a estar nos três círculos.

Ponhamos de parte as esperanças de Churchill acerca do estatuto britânico no pós-guerra, e pensemos acerca do conceito geral de círculos de nações. A visão de WSC não é certamente a de um estado mundial, mas também não é de uma guerra hobbesiana de todos contra todos. Para WSC, algumas nações formam grupos – têm relações especiais com os integrantes desse grupo – e todas elas são democracias ou estados constitucionais auto-governados. Quatro anos mais tarde, com a guerra ainda a de-correr, o governo de WSC participou numa importante conferência em Bretton Woods, New Hampshire, nos Estados Unidos, na qual economistas e diplomatas propuseram novas instituições internacionais que iriam fomentar maior cooperação entre estas democracias. Os governos destes países acreditavam veementemente que se nos anos 30 tivesse havido mais cooperação económica em termos de relações monetárias e de comércio entre as democracias, elas teriam evitado as catástrofes económicas e, consequentemente, a ascensão do fascismo e a própria guerra.

WSC, como ele próprio admitia, não era nenhum economista. Mas era um grande defensor do comércio livre, de violar um antigo dogma realista, tornando o seu país dependente de outros em prol de uma maior prosperidade. Assim sendo, em 1944 ele apoiou os esforços das democracias na construção de uma ordem internacional que preveniria um regresso aos desastres da década de 30. Daí surgem o Fundo Mo-netário Internacional e o Banco Mundial, que ainda hoje existem. Em Bretton Woods, os delegados tentaram ainda estabelecer Organização do Comércio Internacional, mas os britânicos e os americanos não con-seguiram chegar a acordo nos termos, e por isso três anos mais tarde, em 1947, puseram em prática uma versão mais fraca, o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, ou GATT – que se tornou a Organização Mundial de Comércio em 1995. Churchill apoiava ainda a aliança da NATO, que ligava a Europa Ocidental e a América do Norte numa aliança de segurança. Poderia dizer ainda mais, mas já conseguem ter uma ideia: WSC ambicionava uma ordem internacional em que as democracias tivessem relações especiais, marcadas por maior cooperação e confiança, para que pudessem permanecer democracias.

Já toquei um bocadinhoJá toquei um bocadinho no meu segundo ponto, sobre como WSC conseguiu, mais ou menos, as planícies solarengasque queria depois da guerra. Nomeadamente, uma ordem internacional para proteger a liberdade individual e a democracia em casa, prevenindo ou pelo menos contendo depressão, extremismo político e agressão no exterior. Uma ordem que requeria mais regras e instituições do que o mundo alguma vez tinha visto: mais tratados multilaterais a governar as relações comerciais e monetárias, mas também, com a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte em 1949, e também com as alianças americanas com o Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, e outros, segurança colectiva contra a ameaça soviética.

De facto, o General Sir Adrian Bradshaw afirma que muitas das ideias daquilo que eventualmente se tornou a NATO foram apresentadas por Churchill durante um almoço com um jovem enviado do Presidente Harry Truman, em Março de 1948. Foi um almoço em que, digamos, foi servido álcool, e a velocidade com que Churchill expunha as suas ideias era cada vez maior, ao ponto de um americano que estava presente pedir algum papel para anotar as ideias de Churchill.

“Jovem rapaz,” afirmou Churchill visivel-mente irritado, “não te consegues lembrar de nada?”

Em desespero, o jovem foi à casa-de--banho, pegou em algum papel higiénico e escreveu tudo o que conseguia. Estas notas tornaram-se a base do pensamento americano sobre a NATO.

De qualquer forma, o sistema era um em que os Estados Undos, com o seu enorme poder, entravam num pacto geral com países de média e pequena dimensão da Europa, Canadá e do Pacífico. Sob este pacto, a América vincular-se-ia a estas regras, tor-nando o seu próprio comportamento mais previsível e abrindo-se a influência dos seus aliados. A América beneficiou com a extensão do seu poder ao longo do tempo e por tornar mais eficiente o exercício desse poder. Os estados mais pequenos desistiriam dos seus impérios formais e submeter-se--iam à liderança americana; mas em troca obteriam segurança perante a intimidação soviética, prosperidade para o seu povo, e uma porção significativa de influência sobre os Estados Unidos. Os economistas dizem-nos que as instituições funcionam dando aos governos mais informação sobre as preferências e capacidades uns dos outros, e fazendo com que a cooperação compense cada vez mais ao longo do tempo. Isto foi essencialmente o que aconteceu na ordem internacional pós-guerra no Ocidente. A integração europeia começou e aprofundou--se sob esta ordem – como uma espécie de versão intensificada desta – com o apoio dos Estados Unidos. Há muito mais a dizer sobre esta ‘lógica do Ocidente’, como lhe chamaram John Ikenberry e Daniel Deudney. As suas raízes encontram-se em escritos de juristas e filósofos dos séculos XVIII e XIX. Esta ordem internacional é, repito, uma tentativa de salvaguardar a liberdade individual no interior dos países estabelecendo instituições entre eles. Mas também ajudou a expandir a democracia entre os seus membros; a NATO e outras instituições parecem também ter tido um efeito socializante, através de mecanismos complexos. Com isto quero dizer que vários países, incluindo Portugal, se democratizaram enquanto membros da ordem internacional. Nenhuma democracia era uma ilha.

Esta ordem internacional liberal (OIL)Esta ordem internacional liberal (OIL) depois da Segunda Guerra Mundial com-pensou para todos os seus membros, in-cluindo o Reino Unido, incluindo Portugal, incluindo os Estados Unidos. Poderia haver recessões económicas, mas não mais gran-des depressões. As barreiras ao comércio internacional caíram progressivamente ao longo das décadas, e as condições de vida nesses países aumentaram mais do que nunca. Esta ordem internacional foi parte do que permitiu ao Ocidente du-rar mais que o bloco soviético e vencer a Guerra Fria. E é fundamental notar que os países na ordem internacional perma-neceram países separados. Foi o sistema a que muitos outros países aderiram depois do colapso da União Soviética em 1991, quando os países do Terceiro Mundo que tinham permanecido afastados da ordem internacional liberal se juntaram a ela – ou pelo menos a partes dela, um ponto a que retornarei mais tarde.

WSC teria provavelmente visto estes anos como vastas planícies solarengas: não uma utopia, mas uma ordem internacional bem melhor do que a que a Europa ou o mundo tinham tido em Junho de 1940 ou até Outubro de 1948. Esta ordem passou a ser percepcionada como o normal das relações internacionais, pelo menos entre as democracias ocidentais. Quando tomamos como garantido que uma emergência como a crise financeira de 2008 não produz uma depressão global; que um cidadão portu-guês pode facilmente comprar um iPhone feito na China ou uma máquina de café italiana; que uma guerra entre a Alemanha e a França é impensável: temos que dar graças à ordem internacional liberal. No Ocidente estamos tão habituados a esta ordem que estamos tentados a pensar nela como uma inevitabilidade histórica. Mas, tal como a própria democracia, esta ordem internacional não é uma inevitabilidade, e sim uma conquista. E sendo uma conquista, pode ser revertida, ou pode atrofiar – o que me traz ao meu terceiro ponto.

O meu terceiro ponto é que esta ordem está actualmente em risco devido a dois desenvolvimentos: a ascensão da China, e a deriva da própria ordem em direcção àquilo a que chamarei cosmopolitismo.

Primeiro, os países que se juntaram à ordem enriqueceram, e o maior vencedor é a China. A China é um participante eco-nómico pleno na OIL, e os seus resultados são de facto impressionantes. É um gigante da manufactura, capaz de fabricar e enviar enormes volumes de encomendas à veloci-dade da luz – e nas últimas três décadas e meio tirou da pobreza mais pessoas do que qualquer outro país na história. A China tem excedentes comerciais maciços com a EU e com os EUA; também empresta imenso dinheiro aos EUA para alimentar os hábitos de consumo americanos. O pro-blema é que a China não é uma democracia liberal, multipartidária. Tem uma economia semi-capitalista, mas ainda tem um sistema político leninista. Um partido, o PCC, mo-nopoliza o poder político e está determinado a esmagar quaisquer concorrentes.

Até agora, o Partido tem sido muito bem sucedido, confundindo várias previ-sões ocidentais sobre o seu declínio. Isto é importante porque, ao contrário dos europeus e dos norte americanos, o partido que governa a China não quer uma ordem internacional que salvaguarde a democra-cia dentro dos países. Quer uma ordem internacional que mantenha a democracia afastada, longe das fronteiras chinesas. A China não gosta do enviesamento liberal face a algumas instituições internacionais, como os acordos de direitos humanos, os ajustamentos estruturais económicos exigidos pelo FMI. Consequentemente, a China tem dado passos subtis de modo a enfraquecer o escrutínio aos direitos humanos por parte da ONU. E começou a sua própria instituição financeira internacional, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), que não exige que os países mutuários se tornem mais democráticos. O BAII finan-cia grande parte do 1 trilião de dólares da iniciativa Belt&Road que percorre Ásia, África, o Médio Oriente e Europa Orien-tal – um projecto quatro vezes maior que o Plano Marshall.

Enquanto que a expansão da OIL enco-rajou a democratização – em países como Portugal e Espanha na Europa, e Coreia do Sul e Taiwan na Ásia – a ascensão da influência chinesa pode muito bem ter o efeito contrário. Podemos chamar a este resultado provável Internacionalismo com Características Chinesas.

A segunda ameaça à OIL emerge no próprio ocidente. Os choques políticos do memorável ano de 2015 demonstram isso mesmo. Primeiro, em Junho, quando uma maioria dos britânicos votou pela saída da UE. O significado exacto do Brexit não é ainda claro, mas é claro que a maioria dos votantes britânicos considera que a integração europeia foi longe demais. E em Novem-bro desse mesmo ano nos Estados Unidos foi eleito Donald Trump, um candidato abertamente hostil a acordos de comércio livre – chamou à NAFTA o pior acordo alguma vez negociado – retirou os EUA das negociação para a Parceria Transpacífico (TTP, na sigla original) e para o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla original). Trump é também aparentemente céptico relativamente à NATO, e às alianças com o Japão, Coreia do Sul, e outros aliados de longa data. Parte de tudo isto pode ser apenas retórica, a técnica de negociação agressiva de um magnata imobiliário de Nova Ior-que. Mas, no geral, Trump não parece ter grande uso para dar à ordem internacional em que o seu país – o meu país – teve um papel essencial, quer em termos de criação como em termos de manutenção. Ele vê as relações internacionais como um conjunto de transacções, não relações contínuas. E nestas transacções, inevitavelmente, um dos lados ganha e o outro perde, mesmo entre aliados.

Por detrás do Brexit e de Trump – e da ascensão de outras forças como Bernie Sanders nos EUA, Jeremy Corbyn no Reino Unido, a esquerda anti-globalista na Europa do Sul e a direita anti-globalista na Europa de Norte – está um profundo desconten-tamento com a OIL, que se estende pelo ocidente. Particularmente descontentamento com as perturbaçõesprofundas que a OIL trouxe – perturbaçõesaos modos de vida habituais e valorizados – perturbaçõesque são sentidas por muitos, especialmente de classe média e trabalhadora, não como preservação da democracia, mas como perda da democracia. Notemos a ironia: uma ordem internacional desenhada para preservar a liberdade e o auto-governo é agora vista por milhões como restringindo essas mesmas coisas.

Há componentes económicos e culturais nestas perdas, e estes são muito difíceis de resolver. No âmbito económico, muitos daqueles que votam em partidos anti--globalização perderam os seus empregos, ou tem empregos com salários baixos, ou isso acontece aos seus filhos ou netos. E atribuem a culpa disto ao comércio livre, ao investimento estrangeiro, à imigração. No geral, a OLI enriqueceu os países, mas, como esperado, no interior dos países re-distribuiu rendimento e riqueza. Grande parte da perda do trabalho na indústria deve-se a automatização. Mas isso não importa: a culpa recai quase toda sobre a abertura económica.

No âmbito cultural: abrir as economias e as sociedades enfraquece, inevitavelmente, a cultura tradicional, e traz novas normas – comida, arte, linguagens, perspectivas, costumes sociais. Isto está a acontecer a um ritmo veloz e a uma escala massiva na maioria das democracias. Nós, Americanos, não gostamos de falar de classe, mas é claro que as disrupções são sentidas de forma diferente conforme a classe social. Para as nossas elites, a OLI trouxe uma mistura de culturas revigorante e oportunidades para auto-expressão individual e experimentação social. Mas estas novas normas pressionam todos os cantos das nossas sociedades de uma forma que, ironicamente, leva a uma nova homogeneidade cultural. Ontem vi um café do Starbucks em Lisboa!

E esta homogeneidade global não é bem recebida por muitos que trabalham em fábricas, em pequenas cidades, que praticam agricultura – por aqueles que atribuem um profundo significado à sua comunidade, ao lugar, à história, e ao país. Em dois artigos que publiquei, argu-mentei que podemos entender o que está a acontecer reconhecendo que o próprio liberalismo evolui ao longo das décadas. O liberalismo sempre foi um sistema que procura defender a liberdade individual. No entanto, aquilo que o liberalismo vê como principais ameaças à liberdade individual tem mudado. Nos séculos XVIII e XIX, os liberais viam o estado despótico, encarna-do na monarquia absoluta, como a maior ameaça. E portanto, o objectivo era o de domar o estado, torná-lo um estado liberal. Desde o final do século XIX até meados do século XX, os liberais passaram a ver o capital sem restrições – dinheiro usado para fazer mais dinheiro – como a principal ameaça. O objectivo passou, então, a ser o de usar o agora domado estado liberal para regular a economia de várias maneiras, especialmente para proteger os trabalha-dores das suas mudanças. Desde os anos 60, muitos liberais passaram a ver como principal ameaça à liberdade individual as culturas e instituições tradicionais. O liberalismo de hoje em dia é o liberalismo de 3ª fase, que vê o indivíduo como livre quando este ou esta não está vinculado por nenhuma cultura ou religião ou modo de vida ou lugar ou papel de género que tenha sido herdado, quando ele ou ela acima de tudo é, não um cidadão de uma democra-cia que co-existe com outras democracias, mas sim um cosmopolita. Esta terceira fase do liberalismo recruta o estado liberal e o agora domado capital – grandes corpora-ções – satisfaz estas supostas ameaças. As grandes corporações são agora algumas das entidades mais progressistas no planeta.

Existem razões para esta evolução do liberalismo, e não quero criar uma compe-tição normativa entre as três fases. Em vez disso, quero afirmar que este liberalismo de 3ª fase não é algo com que as pessoas das democracias liberais tenham concordado através de um processo democrático. Foi algo que emergiu em partes das elites da sociedade e que tem, ao longo das últimas décadas, capturado a maior parte dos partidos políticos convencionais, que depois o põem em prática – na lei e em política pública e corporativa. Há resistência à 3ª fase do liberalismo. Algumz provém dos liberais de 1ª fase, alguma de liberais de 2ª fase que ainda existem. E alguma de anti-liberais. Isso é evidente nas reacções perniciosas que vemos, com demasiada frequência, hoje em dia. Movimentos racistas agitam e conju-ram um passado negro, como temos visto em incidentes perturbadores em algumas partes da Europa e na minha cidade natal, Charlottesville, Virginia, há pouco mais de um ano. Não quero desculpar minimamente estas reacções destrutivas. Devemos repudiá-las claramente e precisamente porque elas ameaçam a democracia.

Mas o que é que pode ser feito?

O meu quarto ponto é que vale a pena salvar a ordem internacional liberal mas que esta precisa de reforma. Porque é que vale a pena salvá-la? Vale a pena salvá-la? Pode a sua utilidade ter chegado ao fim? Muitos à Direita e à Esquerda pensam que sim.

Vale a pena salvar a ordem internacional pela mesma razão que WSC considerou que valia a pena criá-la: porque é a ordem mais capaz de salvaguardar o auto-governo e a liberdade que são legado de tantos países. WSC e essa geração de líderes ocidentais percebiam que a democracia se desgasta quando as democracias deixam de coo-perar de forma previsível: os problemas económicos tornam-se crises diferentes. Os governos autoritários e as ideologias venenosas tornam-se, em tempos assim, mais atractivos para muitos. Os conflitos internacionais e guerra tornam-se mais prováveis, e os países começam a preparar--se para essas coisas.

Mas como preservar a ordem interna-cional que preserva a democracia? Afirmei que uma das ameaças à ordem é a ascensão da China. E quero deixar claro que não há nada a fazer directamente em relação a isso. O Ocidente não pode deter a ascensão da China. Ninguém quer guerra ou ameaça de guerra com a China. O máximo que podemos fazer é continuar a ter esperança e trabalhar para a democratização da Chi-na – para uma transição pacífica para um regime liberal, multipartidário. Mas isso é precisamente o que o PCC não quer. A curto-prazo, portanto, devemos estar pes-simistas. E podemos estar a testemunhar as primeiras fases de separação do mundo em dois sistemas: um pensado para prote-ger a democracia, o outro para proteger o autoritarismo. Isto não é uma nova Guerra Fria, acho, porque até agora nem a China nem a Rússia têm uma ideologia que tenha apelo internacional suficiente. Mas talvez seja aquilo a que WSC denominaria de dois círculos de estados – competindo enquanto cooperam.

WSC e essa geração de líderes ocidentais percebiam que a democracia se desgasta quando as democracias deixam de cooperar

Felizmente, relativamente a este segun-do desenvolvimento – o afastamento do Ocidente do objectivo inicial da OIL – os europeus e os norte americanos têm mais controlo. Não sou arrogante ao ponto de ter um plano abrangente de reforma.

Na verdade, acho que planos abran-gentes são parte do problema. Para que fique registado, acho fundamental manter a NATO – uma aliança que tem cultivadoa democracia nos estados membros. E con-cordo com a sabedoria convencional liberal acerca do comércio internacional: quanto mais livre, melhor. Tal como o comércio duradouro entre Portugal e Inglaterra tem beneficiado ambos os países ao longo dos séculos, a OMC tem sido benéfica para todos os países em geral. E, de forma geral, a livre circulação de capital por fronteiras nacionais também tem sido benéfica. Estou menos certo relativamente à livre circulação de pessoas, de trabalho. Esta é uma coisa relativamente nova, uma imagem de marca do liberalismo de 3ª fase, vista de forma mais explícita no chamado movimento de fronteiras abertas. Fronteiras abertas baixam os salários e provocam a erosão das culturas e dos próprios estados-nação.

Há, claro, argumentos a favor da alta mobilidade internacional do trabalho. Mas de qualquer forma, o meu ponto principal é que questões sobre imigração, e sobre movimentos de comércio e capital, devem acontecer através de processos democráticos legítimos no interior dos países. Isto é, os partidos políticos à direita e à esquerda devem reconhecer que os indivíduos cuja liberdade é suposto a ordem internacional defender, são cidadãos de países – países que têm algum significado para eles. Re-cordemo-nos que a OIL nunca teve como intenção ser um projecto cosmopolita – de eliminação dos países – o guião não era a canção “Imagine” de John Lennon. “...imaginem que não há países...” As planícies solarengasde Churchill não eram isso. Desde o tempo do filósofo Immanuel Kant no final do século XVIII, ao consenso internacional durante a Guerra Fria, que a intenção era a de ajudar a manter as nações independentes e democráticas tornando as relações entre elas mais racionais, pacíficas e prósperas. O génio da democracia liberal é a sua capaci-dade de contínua auto-correcção, e isso não provém de pessoas inteligentes com grandes planos que impõem à sociedade – isso é o que acontece nos sistemas comunistas e fascistas – mas sim do livre debate no seio e entre as próprias democracias. Os partidos políticos nas democracias precisam de prestar mais atenção àqueles que perderam para o liberalismo de 3ª fase, e não apenas tentar distraí-los com outras políticas ou relegá-los a uma categoria ‘deplorável’ e esperar que desapareçam. Os nossos líderes devem ver todos os cidadãos como plenos cidadãos, com direito a auto-governo.

Hoje, em 2018, não estamos nem próximos dos dias sombrios de Junho de 1940, quando Winston Churchill disse aquilo que todos sentiam: que o Reino Unido, a Europa, e o mundo estavam à beira de uma nova Idade das Trevas, de um abismo. Mas as planícies solarengasque ele nos ajudou a atingir es-tão a ficar enevoadas. Podemos vislumbrar momentos de escuridão e por vezes temos a sensação de que estamos gradualmente a recuar em direcção ao abismo. Penso que Sir Winston Churchill concordaria que no nosso tempo, nós as democracias podemos subir juntas e ficar nas planíciesse tivermos em conta e ouvirmos e debatermos com toda a população à medida que reformamos a nossa ordem internacional. Por outras palavras, se usarmos a democracia para preservar a democracia.

Obrigado.


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