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Dahrendorf Memorial Lecture Em Defesa de um Patriotismo Razoável

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Encontramo-nos hoje debaixo de uma nuvem. Por todo o Ocidente, forças nacionalistas – muitas tingidas com xenofobia, preconceito étnico e fanatismo religioso – estão em ascensão.

William Galston William Galston

The Brookings Institution, Columnist, Wall Street Journal, Washington D.C.

É uma honra ser convidado a proferir a Dahrendorf Memorial Lecture sobre o tema “Patriotismo, Cosmopolitismo, e Democracia”. Na minha intervenção, irei defender aquilo a que chamo de “patriotismo razoável”, e irei argumentar que comunidades políticas separadas e distintas são os únicos locais onde política decente e – especialmente – democrática pode ser posta em prática. Começo com algumas clarificações conceptuais.

Cosmopolitismo é uma doutrina que dá prioridade à comunidade de seres humanos enquanto tal, sem ligar a diferenças de nascimento, crença ou fronteiras políticas. A antítese do cosmopolitismo é o particularismo, no qual a prioridade é dada a um grupo ou subconjunto de seres humanos que partilham características. Há diferentes formas de particularismo que reflectem os diferentes objectos de pertença primária – comunidades de correligionários (a ummah muçulmana), etnia, e cidadania partilhada, entre outros.

Patriotismo designa um apego especial a uma comunidade política particular, embora não necessariamente à forma existente de governo. Nacionalismo, com o qual patriotismo é frequentemente confundido, representa um fenómeno muito diferente – a fusão, real ou aspiracional, entre uma etnia partilhada e soberania estatal. O estado-nação é, portanto, uma comunidade em que um grupo étnico é politicamente dominante e define os termos da vida comum.

Passemos agora ao nosso tópico. Encon- tramo-nos hoje debaixo de uma nuvem. Por todo o Ocidente, forças nacionalistas – muitas tingidas com xenofobia, preconceito étnico e fanatismo religioso – estão em ascensão. As recentes eleições húngaras apresentaram uma retórica puramente antissemita que não era ouvida na Europa desde a década de 40. Os cidadãos estão a ser convidados a abandonar princípios cívicos unificadores em favor do particularismo divisivo e exclusivista.

É tentador reagir rejeitando o particula- rismo, e depositando as nossas esperanças em princípios puramente cívicos – isto é, adoptar aquilo a que Jurgen Habermas chamou de “patriotismo constitucional”. Mas a questão não é, e não pode ser, assim tão simples.

Os Estados Unidos são frequentemente vistos como berço e exemplo de uma ordem cívica. Você é ou torna-se um americano, alegadamente não por causa da religião ou da etnia mas porque afirma, e está preparado a defender, os princípios e instituições básicos da comunidade. “Todos os homens são criados iguais”, “Nós, o Povo”. O que poderia ser mais claro que isto?

E mesmo assim, o próprio documento que ilustremente defende certas verdades como autoevidentes começa por invocar um conceito que está longe de ser autoevidente – nomeadamente, um povo distinto que exista pode dissolver as ligações políticas que a ligaram a outro povo e assumir “uma posição separada e igual” entre as nações da Terra, à qual tem direito por nada menos que “as leis da natureza e do Deus da natureza”. A igualdade e independência dos povos sustêm-se nas mesmas fontes que os direitos dos indivíduos

Mas o que é um povo, e o que o separa de outros? John Jay, o menos conhecido dos três autores d’O Federalista, foi aquele que foi mais longe na tentativa de responder a esta questão. No Federalista no2 ele escreveu que “A Providência teve o gosto de dar este país unido a um povo unido – um povo descendente dos mesmos antepassados, que fala a mesma língua, que professa a mesma religião, apega- do aos mesmo princípios de governo, muito similar em termos de maneiras e costumes, e que, pelos seus conselhos, armas e esforços conjuntos, lutando lado a lado uma guerra longa e sangrenta, nobremente estabeleceu a sua liberdade e independência geral.”

Esta descrição do povo americano era, na altura, apenas parcialmente verdade. Não se aplicava aos afro-americanos, para não falar dos católicos e das muitas dezenas de colonos para quem o alemão era a língua da vida quotidiana. É muito menos verdade hoje em dia. Mesmo assim, exige reflexão.

Podemos ler Jay como se este sugerisse que certas semelhanças fomentam a identidade e unidade de um povo, e que a ausência destas semelhanças complica esta tarefa. Diferenças religiosas podem ser divisivas, especialmente quando estão ligadas a uma ideia controversa sobre o governo, como era o caso do catolicismo até metade do século passado, e como é hoje em dia o caso do Islão. A ausência de uma linguagem partilhada torna mais provável que sub-comunidades linguísticas pensem em si mesmas como povos separados, como foi o caso do Canadá ao longo de grande parte da sua história, e é ainda hoje o caso da Bélgica. Por outro lado, participação numa luta comum pode forjar a unidade popular e fomentar a igualdade cívica.

Não é um acaso, sugiro eu, que as linhas de universalidade e particularidade estejam entrelaçadas ao longo da história do povo americano, tal como estão, suspeito eu, nas comunidades políticas em todo o Ocidente. Também não é um acidente que durante períodos de tensão – ameaças à segurança e mudança demográfica, por exemplo – a tensão latente entre estas linhas ressurja muitas vezes. Um patriotismo razoável dá à particularidade aquilo que lhe é devido sem permitir que as paixões do particu- larismo afoguem as vozes de princípios cívicos mais abrangentes.

Um patriotismo razoável dá à particularidade aquilo que lhe é devido sem permitir que as paixões do particularismo afoguem as vozes de princípios cívicos mais abrangentes

Há uma diferença entre cosmopolitismo e universalismo. Falamos de alguns princípios como universais, querendo dizer que eles se aplicam em todo o lado. Mas o usufruto desses princípios requer algumas instituições que os apliquem, normalmente situadas em comunidades políticas particulares. Nesse sentido, a Declaração de Independência Americana atribui certos direitos a todos os seres humanos mas acrescenta de ime- diato que a garantia destes direitos requer o estabelcecimento de governos. Note-se o plural: não só haverá multiplicidade de governos, como estes poderão assumir varia- das formas, todas elas legítimas, enquanto defenderem direitos e se sustentarem no consentimento dos governados.

Como podemos ver, não há contradi- ção, pelo menos a nível de princípio, entre princípios universais de direitos e apego patriótico a comunidades particulares. No caso de muitos americanos e europeus, na verdade, a disposição dos seus países para defender princípios universais intensifica o seu orgulho patriótico. A universalidade indica o espectro em que os nossos princípios se aplicam; nada tem a ver com o âmbito da nossa principal lealdade.

Contrariamente, existe uma contradição entre patriotismo e cosmopolitismo. Não se pode ser simultaneamente um cidadão do mundo e de um país particular, pelo menos no sentido em que devemos escolher entre privilegiar a Humanidade como um todo, ou privilegiar algum sub-grupo da Humanidade.

Esta formulação assume aquilo que alguns contestaram – que a frase “cidadão do mundo” tem um sentido discernível. Num discurso muito comentado, a Primeira-Ministra bri- tânica Theresa May declarou que “se você acreditar que é um cidadão do mundo, é um cidadão de lado nenhum”. Superficialmente isto é obviamente verdade, porque não há qualquer entidade global de que se possa ser cidadão. Mas se formos um pouco mais fundo, a questão torna-se mais complicada.

Por exemplo, podemos ver muitos tipos diferentes de grupos cosmopolitas – cientistas e matemáticos, por exemplo, cuja procura da verdade depende de princípios de evidência e razão que não têm em conta fronteiras políticas. Enquanto filho de um cientista, tenho vividas memórias de conferências em que centenas de colegas (o termo em si é revelador) se reuniam – não importava muito onde – para discutir as suas mais recentes experiências, onde quer que estas fossem levadas a cabo, em terreno totalmente comum. Do mesmo modo, suspeito que já todos ouvimos falar da organização “Médicos sem Fronteiras”, que se baseia no princípio que nem a ajuda humanitária nem a responsabilidade médica respeitam fronteiras humanas.

Finalmente, há uma forma de cosmopo- litismo que pode ser observada entre alguns governantes – a crença de que é o seu dever maximizar o bem-estar humano, indepen- dentemente da nacionalidade daqueles que disso irão beneficiar. Este utilitarismo global, defendido por filósofos como Peter Singer, moldou o pensamento de alguns políticos que, de forma bem-sucedida, exortaram Tony Blair, Primeiro Ministro na altura, a abrir à imigração os portões britânicos após a expansão da EU em 2004, sem beneficiar do período alargado de transição que os ter- mos de adesão permitiam. Como os eventos subsequentes demonstraram, há uma tensão entre utilitarismo global e a expectativa de que os líderes dêem prioridade aos interesses dos seus próprios cidadãos. De facto, é difícil imaginar uma comunidade política na qual a crença na legitimidade da auto-preferência colectiva não domine – o que não significa que a maioria dos cidadãos atribua peso nulo aos interesses dos seres humanos que existem além das fronteiras da sua comunidade, ou que devam fazê-lo. Auto-preferência é uma coisa, obtusidade moral é outra.

Há uma distinção, no qual não preciso de me demorar, entre democracia liberal e populista. Ultimamente, temos ouvido falar muito de um “défice democrático” na União Europeia e pelo Ocidente. É dito que burocratas não eleitos estão a tomar deci- sões acima e contra a vontade do povo. Os democratas populistas apoiam esta queixa, pelo menos em princípio, porque acreditam que todas as decisões devem estar sujeitas ao julgamento do povo. O referendo é a expressão mais pura desta concepção de democracia.

A democracia liberal, pelo contrário, faz a distinção entre decisões que as maiorias populares devem tomar, quer seja directa- mente ou através dos seus representantes eleitos, e assuntos que envolvem direitos, que não devem estar sujeitos à vontade da maioria. A defesa de direitos e liberdades fundamentais não é prova de um défice democrático, por mais que as maiorias populares o possam ressentir. Juntamente com uma sociedade civil independente, ins- tituições como tribunais constitucionais dão vida à democracia, assim entendida. É nesta concepção de democracia que me baseio no restante das minhas notas.

Dahrendorf Memorial Lecture Em Defesa de um Patriotismo Razoável

COMO O PATRIOTISMO PODE SER RAZOÁVEL

O filósofo Simon Keller argumenta exaus- tivamente contra a proposição de que o patriotismo é “um traço de carácter que a pessoa ideal possuiria”, pelo menos se a concepção do ser humano bom ou virtuoso inclui uma propensão para formar e agir segundo crença justificada em vez de julga- mentos e ilusões destorcidos. O centro da tese de Kelller é que o apego patriótico leva a que os patriotas neguem verdades pouco lisonjeadoras acerca da conduta do seu país, e por tanto a manter o seu apego de “má fé”. Resumindo, o patriotismo devia render-se à verdade, mas não o faz.

Keller toca na ferida ao falar de uma perigosa tendência, uma que suspeito que a maioria de nós consegue sentir dentro de si. É muitas vezes difícil reconhecer que o nosso país errou, ou talvez até cometeu crimes hediondos. Às vezes, há monstros que se mascaram de patriotas e manipulam sentimentos patrióticos para servir os seus próprios fins.

Mas da mesma forma que os patriotas podem perder o rumo, também podem reconhecer os seus erros e dar o seu melhor para os reparar. Nunca ninguém acusou Ronald Reagan de falta de patriotismo, e no entanto foi ele o presidente que pediu formalmente desculpa aos nipo-americanos em nome do país, pelo injusto internamento durante a Segunda Guerra Mundial.

À moda clássica aristotélica, o patrio- tismo pode ser visto como um meio entre dois extremos – zelo cego pelo país numa das extremidades do contínuo, indiferença culpável ou hostilidade total na outra. Ou, se preferir, podemos ver o patriotismo como um sentimento que necessita de uma regulação baseada em princípios. Carl Schurz, que deixou a Alemanha pelos Estados Unidos depois da revolução falhada de 1848, tornou-se um um general da União durante a Guerra Civil e depois um senador americano. Atacado no Senado como estando muito disposto a criticar o seu país adoptado, Scgurz respondeu, “Meu país, correcto ou errado: se certo, para ser mantido correcto; se errado, para ser corrigido.” Esta é a voz de um patriota razoável.

Patriotismo não significa fidelidade cega, independentemente de tudo. Significa, na verdade, gostar o suficiente do país para ten- tar corrigi-lo quando ele se desencaminha e, quando isso não é possível, fazer uma escolha difícil. Alguns patriotas alemães não judeus saíram do seu país nos anos 30 porque não conseguiam aceitar o que Hitler estava a fazer aos seus concidadãos judeus, não queriam ser cúmplices, e esperavam aliar-se com forças externas que poderiam eventualmente der- rubar o cruel regime de Hitler.

Resumindo: eu posso acreditar que o meu país cometeu sérios erros, que devem ser reconhecidos e corrigidos, sem deixar de ser um patriota. Eu posso acreditar que as instituições políticas do meu país são cruéis e que precisam de uma substituição total sem deixar de ser patriota. Posso acreditar que outros objectos de respeito (a minha consciência, ou Deus) por vezes ultrapassam o meu país sem deixar de ser um patriota. O facto de o patriotismo zeloso poder ter consequências terríveis não significa que o patriotismo ra- zoável e moderado tenha também.

Apesar destes argumentos, é compreen- sível que pessoas moralmente sérias possam continuar na dúvida acerca do valor intrínseco de um sentimento que pode fomentar o mal. Mesmo assim, é possível apoiar o patriotismo como um bem instrumental – como necessário para a preservação de comunidades políticas cuja existência torna o bem humano possível.

Outro conhecido filósofo, George Kateb, hesita até em dar este passo. O patriotismo, argumenta ele, é um erro intelectual porque o seu objecto, o país de alguém, é uma “abstrac- ção” – isto é, uma “invenção da imaginação”. O patriotismo é um erro moral porque requer (e tende a criar) inimigos, exalta uma forma colectiva de amor próprio, e se opõe à única moralidade justificada, que é o universalismo. Os indivíduos e os seus direitos são fundamen- tais; o país, diz ele, é no máximo um “ponto de paragem temporário e contingente no caminho para uma humanidade federalizada”.

Os intelectuais, especialmente filósofos, deviam pensar melhor. O seu único compro- misso deveria ser para com a independência da mente ao estilo do Iluminismo, não ape- nas para si próprios, mas como inspiração para todos. Neste contexto “Uma defesa do patriotismo é um ataque ao Iluminismo.” Desta perspectiva, é difícil ver como pode uma virtude cívica ser instrumentalmente boa se o fim que serve - a manutenção de uma comunidade política particular – é moralmente e intelectualmente dúbio.

Mas Kateb é um observador da condição humana demasiado honesto para ir tão lon- ge. Enquanto que a existência de múltiplas comunidades políticas garante comporta- mento imoral, o governo é, reconhece ele, não apenas um facto lamentável, mas uma necessidade moral: “ao providenciar seguran- ça, o governo possibilita tratar moralmente outras pessoas (e para o seu próprio bem).” Daí parece resultar que as crenças e os traços de carácter que conduzem à função governa- tiva de garantia de segurança são ipso facto justificadas instrumentalmente, tal como as virtudes cívicas. É a partir dessa base que o patriotismo constitucional pode ser definido e defendido. Sim, a comunidade individual que torna a possível a conduta moral está integrada num sistema internacional de várias comunidades em competição que convida, ou até requer, comportamento imoral. Mas como Kateb afirma correctamente, em vez de postular e agir numa comunidade global inexistente, “devemos aprender a viver com o paradoxo.” Enquanto for necessário, haverá lugar para o patriotismo.

Mais um passo, e chego ao final desta parte do meu argumento. A existência de várias comunidades políticas não é apenas um facto que a discussão moral deve ter em conta; é preferível à única alternativa não anárquica – um único estado global. Dani Rodrik, um economista politicamente astuto, explica este caso. Há muitos arranjos institu- cionais, nenhum claramente superior a outro, para levar a cabo as funções essenciais em termos económicos, sociais e políticos. Mas algumas podem ser mais apropriadas que outras em circunstâncias locais particulares. Grupos chegarão a diferentes equilíbrios entre igualdade e oportunidade, estabilidade e dina- mismo, segurança e inovação. Face à famosa descrição de Joseph Schumpter dos mercados capitalistas como “destruição criativa”, alguns grupos irão adoptar a criatividade enquantos outros encolherão através da destruição. Tudo isto antes de chegarmos a divisões de língua, história e religião. Os países individuais esforçam-se para conter estas diferenças sem as reprimir. Quão provável é que um único governo mundial se consiga preservar sem autocracia ou pior? Não é melhor espalhar, e portanto mitigar, a ameaça da tirania com vários estados independentes, para que, se alguns correrem mal, outras se mantenham e defendam a causa da liberdade?

Patriotismo não significa fidelidade cega, independentemente de tudo. Significa, na verdade, gostar o suficiente do país para tentar corrigi- lo quando ele se desencaminha e, quando isso não é possível, fazer uma escolha difícil

Estas questões respondem-se a si mesmas. Se a espécie humana se organiza e auto-governa melhor em várias comunidades, e se cada comunidade requer cidadãos dedicados para sobreviver e prosperar, então o patriotismo não é o caminho para um estado universal. É um requisito permanente para a realização de bem que os seres humanos apenas podem conhecer em políticas estáveis e decentes.

PORQUE RAZÃO A IMPARCIALIDADE NÃO ESTÁ SEMPRE CORRECTA

Uma ponto comum de objecção ao patriotismo sustém-se na premissa de que a parcialidade é sempre moralmente suspeita porque viola, ou pelo menos reduz, normas universais. Ao tratar iguais de forma desigual por ra- zões moralmente arbitrárias, é dito, damos demasiado peso a algumas reivindicações e pouco a outras.

Os críticos notam que os patriotas são devotos a uma ordem política particular por- que é a sua e “não apenas” porque é legítima. Isso é verdade, mas e então? O meu filho é um bom jovem rapaz; eu estimo-o pelo seu coração caloroso e carinhoso, entre muitas outras virtudes. Também o estimo mais que às outras crianças porque é o meu. Estou a cometer um erro moral? Estaria, se o meu amor pelo meu filho me levasse a tratar ou- tras crianças com indiferença – por exemplo, se votasse contra impostos locais sobre a propriedade porque ele já não está em idade escolar. Mas é perfeitamente possível amar o seu próprio sem se tornar moralmente limi- tado, ou irrazoável, quanto mais irracional.

Isto acontece porque um determinado grau de parcialidade é tanto permissível como justificado. Os exemplos de dois filósofos mostrarão o meu ponto. Se estou a apanhar banhos de sol numa praia e oiço dois jovens nadadores – o meu filho e outra pessoa – a pedir ajuda, devo querer salvar ambos se conseguir. Mas imaginem que não consigo. Será que alguém pensa realmente que eu estou obrigado a atirar uma moeda ao ar para decidir quem salvar? Em que teoria da existência humana seria essa a coisa correcta ou obrigatória a fazer?

Agora o segundo exemplo. Ao levar o meu filho à escola, vejo um rapaz em risco de se afogar, num lago onde está imprudentemente a brincar. Embora tenha quase a certeza que o consigo salvar, levarei tempo a puxá-lo para fora, secá-lo, acalmá-lo, e levá-lo de volta aos seus pais. No processo, o meu filho chegará atrasado à escola e faltará a um exame para o qual trabalhou muito para se preparar. Será que alguém pensa que isto justificaria que eu virasse as costas ao rapaz que se está a afogar?

Estas considerações não se aplicam apenas a agentes individuais, aplicam-se também a governos. Há situações em que um país pode evitar um grande mal noutro, e fazê-lo a um custo modesto. Em tais circunstâncias, o bem que que pode ser feito a estrangeiros distantes ultrapassa o custo de o fazer. Nesta lógica, Bill Clinton disse que o facto de ter falhado intervir no genocídio no Ruanda foi o maior erro da sua presidência.

O que se passa é óbvio, acho: na cons- ciência moral comum, tanto as alegações parciais como imparciais têm peso, sendo que o balanço apropriado entre ambas é determinado por factos e circunstâncias. Embora seja difícil (alguns diriam impossível) reduzir este balanço a regras, há pelo menos um enquadramento partilhado – baseada na urgência e na importância de interesses conflituantes – para guiar as nossas reflexões. Regra geral, podemos presumir que, porque os seres humanos tendem demasiado para a parcialidade, devemos ser cuidadosos e dar às reivindicações não parciais a devida atenção. Mas isso não significa que elas devam sempre prevalecer.

PORQUE É QUE O PATRIOTISMO NÃO É MUITO DIFERENTE DAS OUTRAS LEALDADES

Sentindo o perigo de demonstrar demasiado, os críticos do patriotismo recuam face a uma rejeição total da parcialidade. Em vez disso, tentam criar uma divisão entre o patriotismo e outras formas de apego.

George Kateb não apresenta uma crítica general de apegos parciais. Em vez disso, argumenta ele, o patriotismo representa o tipo errado de parcialidade, porque o seu objecto – o país de alguém – é uma abstracção, e iludida acerca disso mesmo. Os indivíduos são reais; os países não. Os indivíduos são dignos de apegos especiais de uma forma que os países não são. É por isso que ele se esforça tanto por criar distância entre amor dos pais e amor do país.

Eu discordo. Embora o amor dos pais e o amor do país não sejam o mesmo, isso não significa que o país não possa ser um objecto legítimo de afecto. De facto, um país não é uma pessoa, mas levanta-se a questão de se o amor só é apropriadamente dirigido a pessoas. Não é demais, nem em termos de discurso nem em termos de sentimento, dizer que amo a minha casa e que por essa razão sentiria dor e falta se algum desastre me forçasse a deixá-la. (Eu já passei por essa experiência.) Um país é, entre outras coisas, um lugar, uma linguagem (a “língua mãe”), um modo de vida, e um conjunto de instituições através das quais as decisões colectivas são feitas e postas em prática. Pode amar-se estas coisas razoavelmente, e muitos fazem-no.

Consideremos imigrantes que chegam legalmente aos Estados Unidos vindos de terras empobrecidas e violentas. As suas vidas no seu novo país são muitas vezes árduas, mas lá pelo menos usufruem da protecção das leis, da oportunidade de progredir eco- nomicamente, e do direito de participar na escolha dos seus governantes eleitos. Será irrazoável que eles sintam gratidão, afeição, e o desejo de prestar um serviço recíproco ao país que lhes deu refúgio?

Kateb está claramente correcto ao insistir que os cidadãos não devem a sua “criação” ao seu país no sentido em que as crianças devem a sua aos seus pais. Mas neste caso, novamente, a sua conclusão não segue a sua premissa. Conseguimos certamente amar pessoas que não são responsáveis pela nos- sa existência: os pais amam os seus filhos, os maridos as suas mulheres. Além disso, os refugiados podem literalmente dever a continuação da sua existência aos países que lhes oferecem refúgio da violência. É menos razoável e apropriado amar as instituições que salvam a nossa vida do que os indivíduos que nos dão vida?

Como sugeriu outro filósofo, Eamonn Callan, se o patriotismo é amor ao país, então as características gerais do amor pro- vavelmente iluminam essa sua forma. Entre os seus pontos principais: “o amor pode ser admirável quando dirigido a objectos cujo valor está seriamente em risco e é admirável nessa altura não apesar mas por causa do valor comprometido.” Um exemplo disto é o amor dos pais para um filho adulto que cometeu um crime sério, um laço que demonstra as virtudes da constância e da lealdade. Isto não significa que os pais sejam livres para negar a realidade das acções do seu filho ou inventar desculpas para elas. Fazer isso seria renunciar tanto à integridade intelectual como moral. Mas dizer que o amor parental pode arriscar passar a linha destas maneiras não é dizer que os pais devem virar as costas a criminosos que acontece serem seus filhos, ou desistir de todos os esforços para os mudar. (E também não é para culpar os pais que dolorosamente concluíram que deviam cortar estes laços.)

CONCLUSÃO: A ÚLTIMA MEDIDA COM- PLETA DE DEVOÇÃO

Há mais uma objecção à minha concepção de patriotismo razoável: é irracional escolher uma vida que o coloque em elevado risco de morrer pelo seu país. O objector pode dizer que não nada há por que valha a pena morrer, uma proposição que eu rejeito. Mais frequentemente, a sugestão é que, mesmo que haja coisas que justifiquem o sacrificio da própria vida (um filho, por exemplo), o próprio país não se encontra nessa categoria. As crianças são concretas e inocentes, enquanto os países são abstractos (“comunidades imaginadas”, na frase de Benedict Anderson) e problemáticos.

Deve uma comunidade política ser moralmente imaculada para que valha a pena matar ou morrer por ela? Os Estados Unidos eram uma sociedade profundamente imperfeita quando foi para a guerra depois do ataque a Pearl Harbor. Os militares nas praias da Normândia não tinham nenhumas das ilusões the dulce et decorum est que levaram os jovens ingleses a considerar bem vinda a eclosão da Primeira Guerra Mun- dial; os soldados lutaram contra puro mal em nome de um bem parcial. Não estavam nem errados nem foram enganados para o fazer, ou pelo menos assim creio. Supo- nhamos que o país de alguém é atacado e milhares de concidadãos morrem. Tudo o que é feito em resposta é uma expressão de desilusão? De modo algum: algumas reacções são necessárias e justificadas; outras são excessivas e ilegítimas. Eu fui a favor da retaliação contra os Taliban, que pediu a alguns americanos que matassem e morressem pelo seu país. A maioria dos americanos concordou, e eu acho que eles estavam certos. Atacar aqueles que não nos atacaram era – e é – uma questão comple- tamente diferente.

Espreitando por detrás da crítica ao patriotismo está o desejo de uma pu- ridade moral inalcançável em política. Concordo com Max Weber, com a ética da responsabilidade que aceita os custos morais necessários para manter a nossa existência colectiva – ainda mais quando o nosso governo se baseia no consenso dos governados. Só em comunidades políticas decentes é que os cidadãos podem esperar praticar a moralidade comum que correc- tamente prezamos. Enquanto tivermos múltiplas comunidades, e enquanto o mal existir, os cidadãos irão enfrentar escolhas que prefeririam evitar, e o patriotismo será uma virtude necessária.


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