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Palestra Memorial Dahrendorf

É uma grande honra ter sido convidado para apresentar a Dahrendorf Memorial Lecture [Palestra Dahrendorf Anual] no encontro deste ano do Estoril Political Forum.

Marc Plattner Marc Plattner

Co-Editor, Journal of Democracy e Vice- President for Research and Studies, National Endowment for Democracy

Não tive o privilégio de conhecer pessoalmente Ralf Dahrendorf, ainda que tenha tido alguma correspondência por email com ele em 2003, quando ele contribuiu com um artigo para o Journal of Democracy. Também conheci várias pessoas que foram próximas dele – particularmente o meu caro amigo Professor Espada, que incluiu um pequeno e eloquente artigo acerca de Dahrendorf no seu novo livro The Anglo-American Tradition of Liberty.

E claro que Dahrendorf também me é familiar através dos seus escritos, especialmente o seu maravilhoso pequeno livro Reflections on the Revolution in Europe [Reflexões sobre a Revolução na Europa], publicado em 1990 pouco depois da queda do comunismo no centro do Leste Europeu. Esta sábia apreciação da situação com que se deparavam os antigos países comunistas no ano que se seguiu às Revoluções de 1989, mantém-se extraordinariamente actual, mais do que um quarto de século mais tarde. Apesar de ele (como sugere o título do seu livro) estar bem ciente de estar a seguir, nalguns aspectos, o modelo das Reflections on the Revolution in France [Reflexões sobre a Revolução em França] de Edmund Burke, Dahrendorf, ao contrário de Burke, está claramente do lado dos revolucionários, e não simpatiza de modo algum com a nomenklatura do antigo regime totalitário.

Na qualidade de um verdadeiro democrata liberal, Dahrendorf estava, claro, deliciado com a queda do comunismo e com as primeiras etapas da sua substituição pela democracia. Mas o seu tom e análise são cautelosos em vez de triunfalistas. Não só está ciente da magnitude dos desafios imediatos com que se deparam as novas democracias; ele também oferece algumas passagens prescientes acerca dos possíveis perigos de uma tirania da direita em antigos países comunistas, uma que “apela a sentimentos reaccionários e sonhos de pureza de uma era passada em vez de visões utópicas de um futuro melhor.”

Mas será que os acontecimentos de 1989 realmente merecem ser caracterizados como uma revolução? Neste ponto Dahrendorf, com razão, encontra-se dividido. Pois a incrível transformação política que estes acontecimentos trouxeram não foi acompanhada de uma revolução comparável de pensamento. Ele cita, com aprovação, a opinião do historiador francês François Furet: “Com todo o alarido e ruído, não houve nenhuma ideia nova que viesse da Europa de Leste em 1989.” E, por precaução, Dahrendorf recorda a constatação do seu colega britânico Timothy Garton Ash: “As ideias cuja hora chegou são antigas, familiares, bem testadas. (São as novas ideias cuja hora passou.)” Esta foi uma das características dis- tintivas das Revoluções de 1989–de toda a Terceira Vaga da democracia aliás. No reino das ideias trouxe não a descoberta de novas verdades mas a recuperação das antigas. Os antigos princípios e práticas da democracia liberal têm perdido o seu apelo global, uma erosão que atingiu o ponto mais baixo nos anos 70, mas as transições democráticas da Terceira Vaga deram-lhes um novo alento.

Ao olhar a situação global de hoje, um quarto de século mais tarde, vemos um cenário bem diferente. Aqueles mesmos princípios e práticas, que nos anos 90 pareciam ter recuperado inteiramente a atractividade de outros tempos, que se espalharam por um leque de países muito maior, parecem agora estar a perder, novamente, o lustro. Hoje, a democracia liberal está claramente à defesa. Regimes autoritários de várias estirpes demonstram uma nova audácia, parecendo estar a ganhar força, à medida que a confiança e o vigor nas democracias esmorece.

Há uns parcos dois anos atrás, a perspectiva de que a democracia estava em declínio era fortemente contestada. Aqueles que a disputavam eram capazes de apontar o facto de que o número de regimes democráticos no mundo praticamente não baixou, desde o seu apogeu no início dos anos 2000, e que ainda não havia nada perto da vaga revertida que Samuel Huntington havia detectado depois dos anteriores períodos de expansão democrática. Hoje, o número global de democracias baixou pouco mais apenas, mas os sinais de que o mundo atravessa aquilo que Larry Diamond chamou de recessão democrática são inconfundíveis. A democracia liberal está a erodir-se numa série de países chave. O fracasso da democracia em ganhar raízes na Rússia já é uma história velha e tristemente familiar. Mais recentemente, temos assistido à erosão do liberalismo em membros da UE, a Húngria e a Polónia, e a sua queda na Turquia. Mas o desenvolvimento mais preocupante de todos tem sido a ascensão de partidos e candidatos populistas nas velhas democracias do Ocidente.

Hoje, a crescente vulnerabilidade da democracia liberal é reconhecida não só por académicos, mas por líderes e comentadores políticos pelo mundo fora. Hoje em dia, parece que não há semana que passe sem que se publique um novo artigo de opinião, ensaio ou livro a chamar a atenção para o estado da democracia e para a crescente fragilidade da ordem liberal internacional, que a tem acompanhado e ajudado a sustentar desde o final da Segunda Guerra Mundial. A verdadeira questão agora já não é mais se a democracia está em risco mas o porquê de a condição da democracia se ter tornado tão atribulada.

Várias explicações genéricas estão à disposição, desde o crescimento económico decrescente à desigualdade económica crescente, à polarização e impasse políticos, à globalização, à decadência moral e cultural. Há provavelmente um grão de verdade na maioria destas explicações, mas todas se assemelham a uma “reunião dos suspeitos do costume.” Em geral, referem-se a problemas que estão há muito entre nós e, portanto, mal podem explicar a velocidade surpreendente com que o declínio democrático se tem tornado a narrativa central da política actual. Além disso, enquanto estas explicações tendem frequentemente a oferecer uma versão plausível do que está a perturbar as democracias avançadas do Ocidente, elas são muito menos convincentes quando aplicadas a democracias mais novas noutras partes do mundo. E, no entanto, as últimas, na maior parte dos casos, parecem sofrer muitos dos mesmos males de que sofrem os seus irmãos mais velhos, frequentemente de forma mais aguda.

Durante o ano anterior ao voto da Grã-Bretanha pelo Brexit e ao da América por Donald Trump – os dois eventos que cristalizaram as preocupações acerca da saúde da democracia no Ocidente – uma série de eleições por outras partes prenunciavam os perigos que se avizinhavam. Como editor de uma revista que acompanha as fortunas da democracia pelo mundo, fiquei especialmente impressionado com os resultados das eleições na Polónia, nas Filipinas e no Perú, três países alfabeticamente próximos mas geograficamente muito distantes. Todos eram histórias de sucesso democrático da Terceira Vaga, e todos estavam a sair-se bastante bem em termos de crescimento económico. Porém, cada um destes países viu candidatos populistas a ascender nas sondagens.

Em Outubro de 2015, a Polónia, referência das transições democráticas do comunismo e uma das economias com melhor desempenho na Europa, deu uma maioria parlamentar ao iliberal Partido da Lei e Justiça (PiS) de Jarosław Kaczyski. Uma vez no poder, o novo governo rapidamente adoptou passos controversos e alegadamente inconstitucionais, para limitar a independência do poder judicial, motivando um aviso da Comissão Europeia apelando à Polónia que corrigisse uma “ameaça sistemática ao estado de direito.”

Em Abril de 2016, no Perú, os eleitores concederam a esmagadora vitória do Congresso ao Força Popular, o partido populista do antigo ditador Alberto Fujimori, que está a servir a sentença de 25 anos de prisão pela grave violação de direitos humanos cometida durante a sua presidência. O candidato presidencial do partido em 2016, a filha do antigo líder Keiko Fujimori, ganhou uma pluralidade muito substancial na disputa pela primeira ronda, embora não tenha conseguido obter a maioria, e foi forçada a concorrer numa segunda corrida contra o candidato o finalista que ficou em segundo lugar, Pedro Pablo Kuczynski. Foi derrotada na segunda volta por menos de um ponto percentual, mas a maioria legislativa do seu partido dá-lhe considerável influência sobre a direcção política do Perú. Entretanto, em Maio de 2016, nas Filipinas, Rodrigo Duterte, o presidente da câmara populista da cidade de Davao, ganhou um termo de seis anos na presidência, ganhando confortavelmente distância em relação aos outros quatro candidatos em campo. Duterte tem-se tornado notório por todo o mundo pela sua linguagem vulgar e pelas execuções extrajudiciais de traficantes de droga pela sua administração; menos bem conhecido é talvez o facto de pouco depois de ter iniciado o cargo, Duterte fez preparativos para dar ao antigo ditador Ferdinand Marcos um novo enterro honroso no Cemitério dos Heróis de Manila.

Em suma, um trio de democracias que lideraram a Terceira Vaga e que foram aparentemente bem-sucedidas – incluindo tanto as Filipinas, a casa do Poder do Povo, a Polónia, o lugar de nascimento do Solidariedade – viram os seus cidadãos votar maioritariamente em candidatos cujo compromisso com a democracia liberal era altamente questionável. Estes eventos convenceram-me de que a vulnerabilidade da democracia liberal era bem maior do que pensava, mas ainda não estava preparado para a brusquidão e magnitude com que a onda de populismo iria em breve atingir o Ocidente propriamente dito.

Não é fácil identificar ligações directas entre as tribulações que afligem as mais novas democracias da Terceira Vaga e as que surgiram agora, nas velhas democracias Ocidentais. No entanto, dificilmente será coincidência o facto da desafeição com a democracia liberal e o apoio por populistas estar a crescer simultaneamente nos dois conjuntos de países. É, portanto, de esperar que haja algumas causas comuns a operar. Para mim, isto retira a força a qualquer explicação do declínio democrático, tal como o impacto directo da crise financeira de 2008 ou os danos provocados aos trabalhadores industriais do Ocidente pela globalização, que não se aplique também aos desenvolvimentos fora do Ocidente.

Um factor que parece estar a fomentar, ou pelo menos a contribuir para, a efemeridade da democracia tanto no Ocidente como “no resto” é o que tem sido chamado de “O Resurgimento Autoritário.” Era este o título do painel organizado pelo International Forum for Democratic Studies do NED no encontro do ano passado no Estoril, e era o tema do livro de ensaios que o International Forum publicou em 2016 com o título Authoritarianism Goes Global [O Autoritarismo Torna-se Global]. O livro do painel do ano passado procurou atrair atenção para a crescente assertividade internacional de regimes autoritários líderes tais como os da China, da Rússia, do Irão, da extraordinária determinação e generosos recursos que dedicaram ao aumento da sua força militar e especialmente do seu soft power. Nós sublinhamos que, embora estes regimes fossem bastante diferentes uns dos outros, tendo muitos interesses conflituantes, frequentemente colaboraram ao trabalhar em prol do seu objectivo partilhado de enfraquecer a democracia no mundo.

A nossa análise foi por vezes mal interpretada como sugerindo que os autoritários eram motivados pelo fim de derrubar regimes democráticos o mais rapidamente que pudessem–com efeito, que eles estavam envolvidos numa campanha de “promoção autoritária” que mimicou o modo como alguns observadores caracterizaram mal a promoção da democracia pelo Ocidente. Mas este nunca foi o nosso argumento. O que nós contendemos foi que os autoritários viram a democracia e a sua dispersão como a maior ameaça ao seu próprio poder e, portanto, estavam envolvidos num maior esforço de longo prazo para semear dúvida e confusão entre os cidadãos de democracias, maculando a imagem da democracia pelo mundo. Mesmo esta posição parecia indevidamente alarmista para muitos leitores há um ano atrás, quando o livro apareceu, mas a maioria desse cepticismo já evaporou, graças em larga medida aos sinais cada vez mais evidentes dos esforços russos para influenciar as eleições democráticas na Europa e nos Estados Unidos.

O vigor dos regimes autoritários líderes tem gerado a sensação de que a democracia não é a única forma de governo apropriada para um país forte e moderno. O progresso económico incrível que a China alcançou tem sido especialmente importante a este respeito. Pelo sim pelo não, a ideia de que há países que escolhem seguir o ‘’modelo chinês’’ é exagerada, pelo menos na medida em que isto for entendido como uma tentativa de cópia das instituições chinesas, ou que haveria sucesso ao fazê-lo. Todavia, num sentido mais vago, a China providencia mesmo um poderoso exemplo de um caminho que tem permitido um rápido crescimento económico, sem a introdução de um governo democrático ou princípios liberais. É desnecessário dizer que isto é uma combinação que pode ser muito apeladora para líderes políticos em países em desenvolvimento, pois promete um crescimento económico que o seu povo procura sem ter de observar normas democráticas. Nem são apenas líderes de países em desenvolvimento que podem achar errado resistir à tentação autoritária. Um dos sinais mais reveladores de que a democracia liberal estava a entrar em apuros foi com o discurso notório a elogiar a “democracia iliberal” dado em Julho de 2014 pelo Primeiro Ministro húngaro Viktor Orban, que foi em tempos uma figura de liderança na transição democrática do seu país. O próprio facto de que um chefe de governo de um estado membro da UE iria, tão abertamente, denegrir a democracia liberal era uma indicação de que o seu apelo ideológico começava a esmorecer. E a reacção relativamente silenciosa ao discurso por parte dos homólogos europeus de Orban sugeriu que defender a democracia liberal não era uma prioridade elevada para eles.

Orban começou o seu discurso em Julho de 2014 afirmando que a transição do comunismo não deve continuar a ser o principal “ponto de referência” ao pensar-se o futuro do seu país. Uma nova transformação tem ocorrido, uma que ele alega ser de magnitude comparável às três “mudanças de regime mundial” (a frase é dele) ocasionadas pela altura da Primeira Guerra Munidal, do fim da Segunda Guerra Mundial, e do fim da Guerra Fria. Orban identifica como o “ponto de partida” deste novo período “a transformação do poder financeiro, económico-global, poder global e militar global que emergiu em 2008.”

Para apoiar a sua alegação de que tal mudança de época ocorreu, Orban cita várias críticas recentes da democracia Ocidental oferecida por líderes políticos Ocidentais, líderes políticos e analistas (especialmente americanos), entre os quais inclui vários comentários que podem ser entendidos como prenúncios da deriva populista na política americana e europeia. Orban depois continua, notando que a globalização, conjuntamente com a necessidade que impõe aos países de serem competitivos na economia mundial, tornou-se numa preocupação dos economistas. Mas ele acrescenta que a mais importante competição debaixo de condições pós-2008 não é económica, mas política:

“O aspecto que define o mundo de hoje pode ser articulado como uma corrida para descobrir uma forma de organizar comunidades, um estado que é mais capaz de tornar a nação competitiva. É por isto que . . . um tópico em voga no pensamento é compreender sistemas que são não ocidentais, não liberais, não democracias liberais, talvez até nem democracias, tornando todavia nações em casos de sucesso. Hoje, as estrelas das análises internacionais são Singapura, a China, a Índia, a Turquia, a Rússia.”

Orban entende que as políticas do seu governo na Hungria, desde o regresso do seu partido ao poder em 2010, têm sido guiadas por uma busca pela “forma de organizar a comunidade capaz de nos tornar competitivos nesta grande corrida mundial.” E para alcançar isto, afirma ele, é necessário haver coragem para marcar uma posição “considerada como um sacrilégio na ordem mundial liberal” – nomeadamente, que “uma democracia não é necessariamente liberal. Só porque uma coisa não é liberal não quer dizer que não possa ser democrática. Mais, é provável que as sociedades fundadas sobre o princípio da forma liberal de organização do estado não serão capazes de suster a sua competitividade no mundo.”

Não há dúvida de que Orban procurou conscientemente, neste discurso, quebrar com a herança liberal ocidental (ou, como disse noutra passagem, encontrar “formas de romper com os dogmas da Europa Ocidental”). Isto ajuda a explicar porque, ao procurar modelos possíveis para a Hungria emular, citou um conjunto de países que eram simultaneamente não-ocidentais e não liberais (embora seja certamente discutível que a Índia mereça ser colocada na última categoria). Embora Orban, noutras partes do seu discurso, tente preencher um pouco das características domésticas da democracia liberal que ele favorece, é claro que a questão da competitividade internacional é a sua principal preocupação, concluindo que o Ocidente está a ficar atrás de poderes não ocidentais de rápido crescimento, cujo progresso económico está a ser alegadamente impulsionado pelo seu carácter iliberal.

Eu não disputaria que a crise financeira de 2008 foi realmente interpretada vasta e razoavelmente como um contratempo para o poder e influência do Ocidente. Não só as economias das democracias avançadas foram severamente prejudicadas pela crise, mas esta ocorreu numa altura em que as economias de vários países em desenvolvimento estavam a despontar, partilhando uma porção crescente do PIB global. Além do mais, era largamente esperado que a preponderância económica da Europa, dos Estados Unidos e do Japão continuasse a erodir-se, em larga medida devido a tendências demográficas poderosas. O declínio demográfico da Europa e do Japão, em particular, significa que estes países quase de certeza irão produzir e consumir uma proporção cada vez mais pequena da riqueza global.

A necessidade sentida de uma resposta global à crise de 2008, combinada com o peso económico crescente de países fora do Ocidente, precipitaram a mudança da arquitectura económica internacional. As democracias líder ocidentais, que previamente organizavam consultas anuais acerca da economia global, no formato do Grupo dos Sete (o G-7, mais tarde brevemente expandido para o G-8 com a adição da Rússia), decidiram dar poder a um grupo mais alargado de nações na forma do G-20 para responder à crise. De relance, as democracias ocidentais que tinham previamente reservado lugares na alta mesa económica apenas para si mesmas, ficaram reduzidas a menos de metade dos membros do G-20.

O reforço do G-20 às custas do G-7 reflectiu a mudança do equilíbrio de poder não apenas na economia mundial mas também na política mundial. Não implicava necessariamente, todavia, o declínio indiscriminado da influência das democracias, já que nessa altura a maioria dos países adicionais pertencentes ao G-20 eram eles mesmos democráticos, incluindo a Argentina, o Brasil, a Índia, a Indonésia, o México, a África do Sul, a Coreia do Sul, e, pode-se dizer, a Turquia; entre os membros do G-20 apenas a China, a Rússia, e a Arábia Saudita eram inteiramente não democráticas.

A infusão de democracias mais recentes nos escalões dos maiores poderes económicos do mundo poderá ter parecido um desenvolvimento prometedor para o futuro da democracia liberal. Mas aqueles que tinham tais esperanças – e devo admitir que eu era um deles –viram-nas largamente frustradas. Isto deve-se, em parte, ao facto de muitos destes países terem sofrido contracções económicas, sectarianismo ascendente, ou escândalos e crises políticas. No entanto, também é verdade que, tendencialmente, não vêm a defesa da democracia liberal como uma componente significativa da sua política externa. Uma prolongada hostilidade ao Ocidente vinda das feridas do colonialismo e do Terceiro Mundismo da era da Guerra Fria parece frequentemente suplantar os interesses comuns que partilham com as democracias estabelecidas. Como resultado, até quando permanecem fortemente dedicadas à democracia liberal em casa, não se pode frequentemente contar com elas para se oporem ao autoritarismo fora.

É necessário dizer uma palavra sobre a maior e muito complexa questão da relação entre a democracia liberal e o Ocidente. A democracia liberal baseia-se em princípios universais–como declarou Ronald Reagan no seu discurso em Westminster ao Parlamento Britânico, que faz este mês 35 anos, “a liberdade não é a única prerrogativa de alguns sortudos, mas o direito inalienável e universal de todos os seres humanos.” Não é menos verdade, no entanto, que a democracia liberal veio primeiro a existir no Ocidente e que o Ocidente ainda permanece o seu bastião. O título do Estoril Political Forum deste ano é “Defendendo a Tradição Ocidental da Liberdade sob a Lei,” e muitas das suas sessões têm sido dedicadas a discutir a condição do Ocidente. Embora alguns diriam que a ideia do Ocidente está a perder o seu poder e relevância, eu junto-me ao Instituto de Estudos Políticos e aos outros organizadores desta reunião em crer que ela permanece em força. A defesa do Ocidente é a causa que pode atrair e unir tanto Europeus como Norte-Americanos, para muitos dos quais defender o Ocidente e defender a democracia liberal são uma e a mesma luta.

Mas também vejo alguns inconvenientes em identificar simplesmente a causa da democracia liberal com a do Ocidente. Primeiro, ela complica a situação dos democratas de países fora do Ocidente, especialmente os que vivem em lugares que viveram o governo colonial ocidental. Lá, os laços históricos da democracia liberal ao ocidente podem provocar mais oposição do que apoio. Claro que, em virtualmente todos estes países, há pessoas que reconhecem a universalidade dos princípios democráticos liberais. Até debaixo de regimes autoritários repressivos há almas corajosas que arriscam as suas vidas na luta para implantar estes princípios nas suas terras. Mas, para a maioria dos cidadãos e líderes políticos em democracias mais recentes, o facto de que estes princípios podem não ter alicerces sólidos na sua própria história nacional dificulta a tarefa de os defender em casa. Nem todos os povos têm a sorte de ter no seu passado a “tradição da liberdade sob a lei.” Segundo, deve ser reconhecido que o preciso sentido do Ocidente não é fácil de definir. É uma ideia composta que abarca uma variedade de expressões e de tensões – entre Atenas e Jerusalém, entre o Cristianismo e o secularismo e entre a Europa e os Estados Unidos, só para mencionar algumas. Como tal, deve chamar-se conceito cosmopolita ao que vai além dos apegos mais estreitos e específicos que animam a vida política das comunidades pelas quais as pessoas estão dispostas a lutar e morrer. Portanto, em última análise, não penso que a ideia do Ocidente seja capaz de substituir ligações mais próximas a casa.

A defesa do Ocidente é a causa que pode atrair e unir tanto Europeus como Norte-Americanos, para muitos dos quais defender o Ocidente e defender a democracia liberal são uma e a mesma luta

É a atenuação destas ligações, ou a dificuldade de acomodá-las dentro do quadro de princípios liberais universais, que me parece estar no âmago da doença contemporânea da democracia liberal. Esta é certamente a essência das reclamações manifestadas pelos cidadãos insatisfeitos no Ocidente, que consideram as suas instituições políticas demasiado cosmopolitas, demasiado remotas e demasiado desligadas da realidade das preocupações e sentimentos dos eleitores. Para os países da União Europeia, claro, este problema tem uma dimensão adicional, pois as instituições de Bruxelas que governam tantas áreas da vida política estão separadas dos contextos nacionais, nos quais a maioria dos europeus ainda estão firmemente enraizados. Ainda assim, o facto de preocupações semelhantes parecerem ter animado muitos dos eleitores dos EUA, em 2016, revela que a tendência para encarar as instituições democráticas como demasiado distantes de sentimentos populares não é peculiar da UE.

Claro que se pode sempre culpar as pessoas pelos seus sentimentos impróprios e pelas suas pobres escolhas eleitorais. Eu, certamente, não penso que devam ser simplesmente aceites como se nada fosse. Onde se deve, então, colocar a culpa do, por exemplo, enorme apoio de que ainda goza o Presidente Duterte nas sondagens de opinião filipinas, apesar de algumas das suas acções escandalosamente iliberais? A democracia liberal é capaz de depender da separação de poderes e de outros mecanismos constitucionais, para conter a tradução de caprichos populares temporários e potencialmente destrutivos para a acção política. Mas não há como escapar ao facto de que a democracia liberal depende, em última análise, da vontade da maioria. Não pode sobreviver se os eleitores continuarem a fazer escolhas eleitorais pobres ou exigências irrazoáveis aos seus governos, especialmente os que ameaçam erodir os contornos liberais do regime.

A democracia liberal irá recuperar o seu antigo estado de saúde se os eleitores forem convictos, não só dos seus méritos intrínsecos, mas também da sua superioridade em relação a todas as alternativas possíveis. Eu reconheço, claro, que hoje é mais fácil dizer isto do que o fazer. Após a Guerra Fria, pouco esforço era necessário para defender a democracia liberal. Depois da morte súbita do comunismo soviético, o cenário internacional parecia não conter desafios ideológicos sérios e nenhuma competição plausível para a supremacia militar ou económica. Mas o chamado momento unipolar provou ser surpreendentemente rápido. Já acabou. Os eventos dos passados dois ou três anos deram às democracias um sinal de alerta. Os seus líderes e cidadãos não podem continuar a dizer que não estão cientes dos perigos com que se deparam, havendo sinais de que estão a começar a dar resposta ao desafio. Em eras de crise passadas, quando os povos perceberam que a liberdade estava ameaçada, as democracias frequentemente mostraram a sua maior força. Há razão para crer que o podem fazer de novo.


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