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Quando em julho de 1996 Michael Walzer, um dos mais importantes pensadores políticos contemporâneos, visitou Portugal para falar da cidadania numa sociedade em mudança, encontrou-se com António Guterres, então primeiro-ministro, e falaram longamente – sobre os efeitos do fim da guerra fria, sobre as oportunidades e as ameaças numa sociedade desigual e injusta, sobre

a pobreza, sobre as economias de casino e sobre a necessidade de novas políticas sociais. No final da conversa, em S. Bento, o filósofo norte-americano de Princeton ficou deveras surpreendido. Não esperava ter com um governante, diretamente e sem intermediários, uma conversa tão aprofundada sobre os seus temas de eleição, a igualdade de oportunidades, a correção das desigualdades, a justiça complexa, a justiça como equidade de Rawls (com os desenvolvimentos mais recentes) ou o pensamento de Habermas… E, longe da teoria, Walzer quis saber o que era o rendimento mínimo, que dava os primeiros passos e com que ele concordava, ou como se concretizava a prioridade dada à educação – com ênfase no pré-escolar ou na escola a tempo completo… Nessa noite, a jantar no restaurante «Via Graça», tendo Lisboa a nossos pés, o filósofo voltou ao tema – tinha ficado impressionado e com uma grande admiração por Guterres, e considerava-o um dos políticos e governantes mais bem preparados de todos quantos conhecera, acrescentando que muito poucos se disporiam a ouvir e a ter uma conversa com um filósofo político, com recusa dos temas de circunstância.

Tanto a teologia, como a filosofia, como ainda outras ciências humanas, integraram substantiva e livremente a tradição multi-secular da universidade europeia, que nasceu espontaneamente das escolas catedrais da Igreja Católica.

«Nascida no coração da Igreja, a Universidade Católica insere-se no sulco da tradição que remonta à própria origem da Universidade como instituição, e revelou-se sempre um centro incomparável de criatividade e de irradiação do saber para o bem da humanidade. Pela sua vocação, a “Universitas magistrorum et scholarium” consagra-se à investigação, ao ensino e à formação dos estudantes, livremente reunidos com os seus mestres no mesmo amor do saber. Ela compartilha, com todas as outras Universidades, aquele “gaudium de veritate”, tão caro a Santo Agostinho, isto é, a alegria de procurar a verdade, de descobri-la e de comunicá-la em todos os campos do conhecimento. A sua tarefa privilegiada é «unificar existencialmente no trabalho intelectual duas ordens de realidade, que muito frequentemente se tende a opor como se fossem antitéticas: a investigação da verdade e a certeza de já conhecer a fonte da verdade».

Constituição Apostólica do Papa João Paulo II, “Ex Corde Ecclesia”, sobre as universidades católicas

A Mário Soares devemos, além da liberdade, a difusão entre nós de uma atitude ou maneira de estar que torna a liberdade duradoura: a disposição para usufruir da liberdade habitualmente.

A notícia da morte de Mário Soares não nos atingiu de surpresa. Todos sabíamos que podia chegar a qualquer momento. Ainda assim — no meu caso e certamente no de muitos outros — atingiu-me duramente. Um silêncio profundo envolveu uma avalanche de recordações. E, com elas, renasceu o sentimento de gratidão — que de forma tão tocante tem sido expresso por tantas e tão diferentes vozes que lhe agradecem a liberdade.

Creio que de facto devemos a liberdade a Mário Soares, embora muitos outros tenham também combatido pela liberdade — ao seu lado e muitas vezes em lados diferentes. Mas a Mário Soares devemos, além da liberdade, a difusão entre nós de uma atitude ou maneira de estar que torna a liberdade duradoura: a disposição para usufruir da liberdade habitualmente.

Com a morte de Mário Soares, acaba o século XX em Portugal. A sua vida resumia quase todo o século. Soares ainda tinha conhecido as grandes figuras da I República, políticos como António Maria da Silva (que não admirava), ou intelectuais como Jaime Cortesão (de quem se considerava discípulo).

Estava em fotografias com Norton de Matos (em 1949) ou com Humberto Delgado (em 1958). A ditadura salazarista prendeu-o, deportou-o e exilou-o. Depois de 1974, venceu e perdeu eleições, foi primeiro- -ministro, foi Presidente da República. Por isso, desde pelo menos 1996, quando acabou o seu mandato presidencial, que quase todos desejaram tratá-lo como uma personagem histórica. Mas Soares, por mais avançado nos anos, nunca se dispôs a cumprir o papel de pai fundador do regime, a pairar sobre querelas e confrontos. Enquanto esteve activo, e esteve-o quase até ao fim da vida, fez questão de tomar partido e de dividir as opiniões. Ainda foi candidato presidencial, contra tudo e contra todos, em 2006, aos 82 anos. Ainda protagonizava polémicas em 2014, aos 90 anos.

No fim, todos tinham razões para o admirar, e todos tinham razões para o criticar. O político que confrontara Vasco Gonçalves na Fonte Luminosa, em Julho de 1975, foi o mesmo que, em Novembro de 2014, quase quarenta anos depois, defendeu José Sócrates diante da prisão de Évora. Houve quem, nos últimos tempos, referisse a sua idade como atenuante. Sim, Soares envelhecera. Mas não mudara. Houve, na sua vida, uma coerência que convém reconhecer. Não era uma coerência doutrinária, como a que tornou Álvaro Cunhal célebre entre a burguesia portuguesa, mas um outro tipo de coerência, que explica, entre outras coisas, porque é que, tendo submetido o país à austeridade em 1983, ao lado do PSD, a contestou em 2013, ao lado do PCP.

Soares era de outra época. E eu fui dessa época com ele.

Soares foi de um tempo em que o amanhã seria forçosamente melhor do que o hoje - e disso todos estávamos convictos. Viveu e lutou com uma coragem assinalável e, sobretudo, levando a sério o que fazia, nunca se permitiu furtar a uma gargalhada, mesmo que inconveniente, furar o protocolo, mesmo que um pouco irresponsavelmente, e fazer o que lhe apetecia, mesmo que um pouco inconscientemente. Como Churchill – e neste aspeto há um paralelo claro – conseguia ser simultaneamente uma criança mimada e um estadista ímpar. Transformava inimigos em amigos (o vice-versa foi muito mais raro) e nunca se esqueceu daqueles que lhe foram leais, ainda que com ele não concordassem. Mais do que um homem, é um símbolo.

Ora, falar de alguém nosso amigo de sempre e, simultaneamente, referência do País, símbolo da Pátria, é extraordinariamente difícil. Adversários vários, dos comunistas à direita, sempre disseram que ele não tinha uma linha política definida, que navegava ao sabor das marés. Porém, se é verdade que Soares sempre viveu da intuição, mais verdade é que foi talvez o único político que num tempo sem liberdade e com pouca informação, como era o do Estado Novo, tenha posto em letra de forma (no livro ‘Portugal Amordaçado’) três objetivos que cumpriu na íntegra.

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