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Faculdade de Ciências Humanas da UCP - Notas sobre a sua história e identidade

Tanto a teologia, como a filosofia, como ainda outras ciências humanas, integraram substantiva e livremente a tradição multi-secular da universidade europeia, que nasceu espontaneamente das escolas catedrais da Igreja Católica.

«Nascida no coração da Igreja, a Universidade Católica insere-se no sulco da tradição que remonta à própria origem da Universidade como instituição, e revelou-se sempre um centro incomparável de criatividade e de irradiação do saber para o bem da humanidade. Pela sua vocação, a “Universitas magistrorum et scholarium” consagra-se à investigação, ao ensino e à formação dos estudantes, livremente reunidos com os seus mestres no mesmo amor do saber. Ela compartilha, com todas as outras Universidades, aquele “gaudium de veritate”, tão caro a Santo Agostinho, isto é, a alegria de procurar a verdade, de descobri-la e de comunicá-la em todos os campos do conhecimento. A sua tarefa privilegiada é «unificar existencialmente no trabalho intelectual duas ordens de realidade, que muito frequentemente se tende a opor como se fossem antitéticas: a investigação da verdade e a certeza de já conhecer a fonte da verdade».

Constituição Apostólica do Papa João Paulo II, “Ex Corde Ecclesia”, sobre as universidades católicas

NOTA PRELIMINAR Completam-se, neste ano de 2016, os 45 anos da fundação da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (pelo Decreto de erecção canónica, da Congregação da Educação Católica, Ad singulare communeque bonum cognoscendum, de 1 de Outubro de 1971). E comemoram-se os 25 anos da (assim chamada) sua «refundação» — isto é, do arranque de uma segunda fase de actividades com cursos novos, depois de os primeiros cursos que nela se criaram e desenvolveram se terem autonomizado em duas novas faculdades, respectivamente de Ciências Económicas e Empresariais e de Direito. Numa sessão comemorativa organizada pela actual Direcção, e a convite do seu Director, o autor do presente texto pronunciou algumas palavras de homenagem à Faculdade, mas também de reflexão, com notas sobre a história e a identidade da Universidade Católica. O texto desse discurso foi posteriormente requerido para publicação, a que se aquiesceu após sofrer uma revisão de estilo e de algum maior desenvolvimento. O que agora aqui se publica são excertos da primeira parte deste texto revisto, a pedido do nosso Director da revista Nova Cidadania 1 , Prof. Doutor João Carlos Espada.

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O PROJECTO DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA COMO REINTEGRAÇÃO DA UNIVERSIDADE

1. A Universidade Católica Portuguesa (e, nela, a sua Faculdade de Ciências Humanas) foi desígnio e concepção da Igreja Católica Portuguesa, da sua hierarquia e do seu povo, obviamente em comunhão com a superior autoridade romana da Igreja Católica. A fundação canónica inicial da Universidade Católica Portuguesa, por decreto da Con- gregação da Educação Católica datado de 1967, só em 1971 obteve o reconhecimento oficial do Estado Português, ao abrigo da Concordata, pelo Decreto-Lei no 307/71. E foi confirmada em novo decreto canónico, de 1971, sendo neste segundo documento canónico expressamente constituída por três Faculdades, de Teologia, de Filosofia e de Ciências Humanas.

É sabido que, tanto a teologia, como a filosofia, como ainda outras ciências huma- nas, integraram substantiva e livremente a tradição multi-secular da universidade europeia, que nasceu espontaneamente das escolas catedrais da Igreja Católica, assumindo depois (por costume) uma evolução universitária (universitas ex-consuetudo), só depois recebendo o reforço da universitas ex-privilegio, à imitação daquela primei- ra mas agora instituída por bula papal ou decreto real, sempre inspirada numa concepção cristã da vida e do mundo, que integrou o melhor do humanismo clássico grego e romano.

No ano de 1988, os reitores das uni- versidades europeias, reunidos em Bo- lonha para comemoração dos 900 anos da Universidade de Bolonha, em número superior a 500 e entre os quais o Reitor da Universidade Católica Portuguesa, assinaram uma declaração, que foi intitulada como “Magna Carta das Universidades”, onde se diz expressamente que a Universidade é «depositária da tradição do humanismo europeu» (Princípios fundamentais, n. 4) — que, como é facto histórico indesmentível, foi milenarmente baseado na inspiração cristã. Entre nós, podemos ainda hoje ver bem comprovada essa inspiração original cristã da universidade europeia na insígnia da mais antiga das nossas universidades, a Universidade de Coimbra: insígnia que é uma imagem da Sagrada Sabedoria bíblica, envolvida por uma legenda extraída do Livro dos Provérbios, de Salomão (cap. 8, vers. 15), em língua latina: «Per me reges regnant et legum conditores justa decernunt». Que se pode traduzir assim: «É por mim que os reis reinam e os magistrados aplicam as leis com justiça».

Tal como enfaticamente decreta a nossa Constituição, por palavras que dificilmente poderiam ser mais incisivas, mas que não são respeitadas: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas»

A “OFICIALIZAÇÃO” POLÍTICA POMBALINA DA SECULAR UNIVERSIDADE EUROPEIA

Ora, não havia nenhuma legítima e boa razão para que, no contexto histórico setecentista da Ilustração, a multissecular orientação da universidade fosse sufocada pela força política, enquanto se mantives- se autónoma e livremente perfilhada no seu seio e na sociedade civil ao seu redor. Não obstante, o poder político de então, movido por um desígnio jacobino “avant la lettre”, impôs uma reforma ideológica à universidade, que assim ficou politicamente oficializada. Foi o que sucedeu entre nós com a chamada reforma da Universidade pelo Marquês de Pombal. Tratou-se ob- viamente de uma instrumentalização do autêntico pensamento do Iluminismo, no seio do qual se desenvolvia uma feliz teorização do direito natural e dos direitos humanos fundamentais de liberdade — e foi por isso que, a essa instrumentaliza- ção política, assentou muito bem o nome pelo qual ficou historicamente designada: «despotismo de Estado iluminado». Como é evidente, em vez de uma reforma im- posta pela força, poderia o poder político ter subsidiariamente promovido a criação de novas universidades, segundo outras orientações e respeitando as antigas — e com isso teria aberto uma nova época de pluralismo universitário. Mas não, a nova época que preferiu abrir foi a do monopólio de um ensino oficial de Estado.

ENSINO OFICIAL DE ESTADO

3. De facto, pode-se em verdade dizer que a reforma pombalina inaugurou em Portugal o monopólio do ensino oficial de Estado. Em linguagem hoje corrente entre nós, dir-se-ia que inaugurou o «ensino públi- co» — significando-se, por esta expressão, num sentido restrito que é jacobino, o ensino em estabelecimento estatal — por oposição a ensino em estabelecimento da iniciativa e direcção de pessoas indi- viduais ou colectivas civis, por exemplo cooperativas, fundações, associações, sociedades empresariais, o qual também pode ser público, em sentido próprio. Entre nós, hoje, o ensino escolar privado, que é chamado “particular e cooperativo”, é normalmente público: enquanto aberto ao público e porque, além disso, é legalmente reconhecido como «de interesse público» 2 , e não apenas de «interesse particular».

O que evidentemente significou a reforma pombalina foi que o ensino universitário, que até aí era autónomo 3 , embora pudesse gozar de reconhecimentos, apoios e privi- légios concedidos pela Igreja e pela ordem política estadual, passou a ser sujeito ao poder e à tutela discricionária dos Gover- nos políticos, portanto transformado em ensino oficioso ou oficial de Estado, hoc sensu. A este propósito, o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e sob o Estado Novo, escreveu lapidarmente assim: «Uma das maiores desgraças da nossa Pátria — poderíamos talvez afoitamente dizer, a maior desgraça da nossa Pátria — é que o Estado considerou função sua a instrução e educação [...] e a Nação deixou-se convencer [...] A coisa começou pela Universidade e vai avançando pelos diversos escalões, con- forme estes assumem interesse político» 4 . Nesta irrespondível sentença de D. António Ferreira Gomes, ficou claramente condenada a dolosa confusão jacobina entre interesse público e interesse político.

A QUESTÃO AINDA ACTUAL DO ESTADO EDUCADOR

4. Deste modo, a reforma pombalina da universidade recriou, em novos termos e em novas circunstâncias, a velhíssima prática dos abusos do poder político, que ainda hoje se mantém: a da interferência ideológica do poder político na cultura, na ciência e na educação, actividades humanas estas enraizadas em dimensões íntimas e invioláveis da inteligência e da consciên- cia das pessoas humanas, medularmente pertencentes à liberdade interior e social das pessoas humanas, e não pertencentes ao Estado. Como é actualmente inequívo- co, segundo a boa doutrina do Estado de Direito, é o cidadão, pelo exercício pessoal (individualmente ou em associação civil) dos seus direitos humanos fundamentais de liberdade, que em rigor deve avaliar e «educar» o Estado, e não o inverso. Os órgãos e serviços do Estado são neutros e imparciais ao garantirem e apoiarem o livre exercício pessoal dos direitos hu- manos de liberdade, entre os quais estão os direitos de investigar, de aprender e de ensinar; e não podem substituir-se ao exercício pessoal das liberdades hu- manas, e nem sequer podem limitar ou discriminar esse exercício segundo as suas preferências políticas e administrativas. Tal como enfaticamente decreta a nossa Constituição, por palavras que dificilmen- te poderiam ser mais incisivas, mas que não são respeitadas: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas» (cf. no 2 do art. 43o da CRP).

O JACOBINISMO DO ESTADO PORTUGUÊS NO ENSINO ESCOLAR

5. De facto, esta expressa proibição de Estado-educador, que de resto é por si mesma evidente em qualquer concepção de Estado de Direito Democrático «ba- seado na dignidade da pessoa humana (como se diz expressamente logo no artigo 1o da actual Constituição da República Portuguesa), tem vindo a ser violada pelo Estado português, por dois séculos 5 , numa continuidade do espírito despótico da reforma pombalina, paradoxalmente glorificado ao longo dos tempos por uma opinião jacobina de Estado, sempre ali- mentada por uma campanha oficiosa de propaganda hegemónica. Aliás estrondo- samente iniciada pelo próprio Pombal, no contexto da ideologia do despotismo iluminado régio 6 . Depois continuada pelo jacobinismo maçónico, quando senhor do poder político de governo durante a monarquia constitucional 7 . E igualmente ainda depois, já republicano laicista na nossa Primeira República.

Na Segunda República, do Estado Novo, o pombalismo não foi oficialmente glorificado; mas a estátua de Pombal, na rotunda do mesmo nome, encomendada anteriormente, foi significativamente inaugurada sob o governo de Salazar — que a não mandou destruir, como fizeram mais tarde, à estátua dele, os herdeiros do espírito pombalino. E a verdade é que o salazarismo, em certo sentido paradoxal- mente, não introduziu uma clara ruptura de continuidade com a tradição iluminista- -pombalina e jacobina-republicana, tendo «de facto» praticado uma doutrina de Estado educador regalista, e sufocado o ensino privado civil e da Igreja 8 .

Chegados à Constituição Política da Terceira República, que (não sem algumas contradições) «felizmente nos rege», mudou sem dúvida, após a revisão constitucional de 1982, a «Constituição Educativa» portuguesa, como já ficou evidenciado pela citação da proibição constitucional de o Estado pro- gramar a educação; e mudou a legislação que a desenvolve e aplica, que é concordante com a Constituição. Mas, continuando numa prática política escandalosa, ainda mais gritante do que a de Salazar, as «políticas públicas» da nossa Terceira República — constitucionalizada como Estado de Direito e «democracia pluralista» — continuam a violar as liberdades pessoais de escolha do ensino, impondo, por via do exclusivo do financiamento público, que é inconstitucional e ilegal, o monopólio da sua rede escolar «pública», discriminando negativamente os alunos das escolas «privadas» quanto à satisfação do seu direito social á gratuitidade do ensino obrigatório.

A HISTÓRIA DOS RESULTADOS DO JACOBINISMO ESCOLAR

6. Actualmente, a historiografia já rectificou a tradicional versão política oficiosa sobre a bondade da reforma pombalina 9 .Mas, independentemente disso, a história da universidade portuguesa, desde então su- jeita à tutela política do Estado, não fornece razões para uma glorificação das efectivas políticas estaduais no âmbito da ciência e da educação universitárias. Até mesmo ao fim do salazarismo, a crítica à universidade foi constante. Mas entretanto, o Estado lucrou sempre muito, em poder político de influência e dominação, pela hegemonia que exerceu sobre a universidade, a partir da oficialização pombalina. Nas últimas décadas do séc. XIX, cem anos depois da reforma pombalina, Eça de Queirós caricaturava negativamente, como bem se conhece, no «Projecto de reforma do ensino» do Conde de Abranhos, os típicos produtos que então saíam da universidade portuguesa. Até ao fim do salazarismo, a crítica à universidade portuguesa continuou a ser predominante- mente negativa 10 . Como ficou destacadamente documentada nas análises de Miller Guerra e Adérito Sedas Nunes, nos anos sessenta, e até às vésperas da queda do regime, na famigerada tese de que «as universidades não se auto-reformam» 11 . A verdade, po- rém, é que o facto então pressuposto era o de Universidades oficiais ou oficiosas de Estado, de funcionários públicos, ainda que ilustres e honrados, sujeitos ao dirigismo é às censuras políticas de Estado — e não o de universidades verdadeiramente autónomas. E por isso é que o problema então levan- tado se auto-definia expressamente como «problema político» — Sedas Nunes titulou a questão exactamente por estas palavras: “O problema político da universidade”. Era aceitável, nesse contexto, concluir daí que «a universidade só se reforma a partir de mandatos exteriores bem explícitos»; só que, sobre «universidades públicas», sujeitas à tutela estadual e sempre suportando o dirigismo oficioso e as purgas de Estado, esta conclusão labora em círculo vicioso: a universidade não se «auto-reforma» preci- samente porque não é «auto-nómica»; e só pode ser reformada, «a partir de mandatos exteriores bem explícitos», precisamente porque vive dependente de «mandatos exteriores bem explícitos». A verdadeira questão era, e continua a ser, a da autonomia das universidades, perante as políticas de Estado. E o que agora não se diz, mas devia ser dito, é que esta situação paradoxal se mantém, implícita nas políticas públicas dirigistas da educação, seja dos governos nacionais, seja até no (subsidiário) âmbito europeu, como se prova com o tremendo «processo de Bolonha», que veio introduzir uma uniformização internacional centralista nas universidades. A actual Constituição Portuguesa consagrou expressamente a autonomia das universidades. Mas de facto elas não são autónomas: não o são as pú- blicas quase gratuitas, porque dependem da subsidiação orçamental do Estado e das políticas públicas da ciência e da investiga- ção; nem muito menos o são as privadas, não subsidiadas, porque forçadas a cobrar propinas e sujeitas à concorrência desleal das universidades gratuitas subsidiadas.

O ESTADO EDUCADOR NO ILUMINISMO DE RIBEIRO SANCHES

7. Para ilustrar de modo sugestivo, ainda que muito brevemente, o gérmen da ideologia pombalina sobre a universidade — que aliás se tem mantido como uma espécie de vírus mutante —, citaremos da obra de uma das personalidades mais influentes em todo o processo histórico pombalino da reforma universitária e anti-clerical: Ribeiro Sanches. Como é sabido, Ribeiro Sanches foi um português do século XVIII (1699- 1783), que, desde os seus 27 anos, viveu em países estrangeiros, numa carreira de médico ilustre, mas também escrevendo em defesa das ideias do despotismo iluminado, tendo inspirado, segundo essa orientação, as reformas pombalinas. Os escritos de Ribeiro Sanches, no âmbito da questão do ensino, mostram que a sua argumentação era sobretudo regalista, como advogado de defesa da competência régia e como advogado de acusação da Igreja quanto ao direito de ensinar. Em íntima articulação com esta opção, ele perfilhou claramente uma concepção funcionalista política, não personalista, da educação — isto é: defendendo uma educação ao serviço dos desígnios de glória do rei, e não da digni- ficação da pessoa humana. Vejam-se os seguintes dois excertos.

8. EXCERTO Nº 1. «É a obrigação do So- berano cuidar na Educação da mocidade, destinada a servir a pátria em tempo de paz e de guerra; destinada a servir os cargos da Religião, tanto para o bem dos povos, como para a felicidade do mesmo Soberano. Daqui vem que ninguém deve ensinar legitima- mente em Escola pública sem autorização Real; daqui se segue que um Secretário de Estado [na linguagem corrente dos nossos dias, seria Ministro da Educação] devia presidir a todas as escolas, tanto de ler e escrever (fundadas só nas vilas do Reino, e proibidas nos lugares e Aldeias do Reino) como as escolas das línguas Aritmética, Geografia, Geometria, Colégios Seculares ou Eclesiásticos Seculares, Universidades.

Foi abuso introduzido nos séculos an- teriores da Ignorância que os Soberanos depuzeram esta sua tão importante obrigação, no poder dos Bispos; o que abraçaram com tanta actividade, quanto era a autoridade que viam iam a adquirir. Daqui as escolas de Ler, do Latim, as Universidades mesmo dependiam dos Bispos ou dos seus Mestres Escolas dos Cabidos.

É tempo que os Soberanos retirem das mãos dos Bispos esta autoridade, que pela ignorância do tempo esteve deposta no seu poder por tantos séculos. [...]

É tempo já que S. M. F. [Sua Magestade Fidelíssima] tome nas Suas Reais Mãos a Jurisdição que Deus poz nelas e criar um Secretário de Estado, a cujo cuidado deve estar a Educação Geral do Reino, e livrá- -lo da Usurpação em que tinha caído, e em que geme.

Não consentiria, e defenderia mesmo Este Secretário de Estado que nas Escolas Eclesiásticas, ou Seminário, proposto aci- ma se ensinasse, nem por Frades, nem por Clérigos, nem por Seculares a Theologia Escholastica, que saíu do Mestre das Sen- tenças de S. Tomaz, de Scoto, de Anselmo, de Durando, etc., etc.

Não seria permitido a nenhum Religioso de qualquer Ordem que fosse, com ordens Menores ou de Missa, com hábito da sua ordem, de estudar ou aprender ou ensinar nestas Escolas Eclesiásticas, ou Seminário.

Os Religiosos nos seus Conventos pode- riam ensinar a Filosofia e a Teologia, com permissão e conhecimento da doutrina que ensinavam: mas ensinar publicamente lhes seria defendido, como defender conclusões pùblicamente, imprimi-las, graduar-se de Doutor, ou de Bacharel» 12 .

9. EXCERTO Nº 2. «Segue-se daqui, sem a menor dúvida, que se S. M. F. quer ver-se Senhor do seu Reino e que seja governado pelas suas Leis, e vê-las executadas, que deve fundar Escolas novas abolindo as antigas: formar um Tribunal da Educação a quem presida um Secretário de Estado, para se educarem Subditos que não conheçam [mais do] que o seu Soberano, e as suas Leis, que são fundadas na Religião Cristã, na Justiça, na Ordem Geral que conserva o Universo [...] 13 ».

A verdadeira questão era, e continua a ser, a da autonomia das universidades, perante as políticas de Estado. E o que agora não se diz, mas devia ser dito, é que esta situação paradoxal se mantém, implícita nas políticas públicas dirigistas da educação

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE AS IDEIAS DE RIBEIRO SANCHES

10. Em comentário a estas posições de Ribeiro Sanches, dir-se-á que, mesmo admitindo, ao tempo, como pertinentes e justas, algumas censuras ao exercício do poder eclesiástico na sua conflitual simbiose com o poder político; e admitindo ainda que o ensino nas universidades merecesse críticas, do ponto de vista do pensamento iluminado que então ganhava muita influ- ência, a questão do cultivo das ciências e da educação, em si e na inspiração que lhe presidia, deveria sempre colocar-se numa perspectiva pluralista de liberda- de, aliás defendida pelo Iluminismo, e não numa perspectiva de luta pelo poder funcionalizada à satisfação de desígnios de grandeza do Reino pela utilização «da mocidade». A argumentação de Ribeiro Sanches não é uma defesa da liberdade das ciências e da educação; é, sim, uma crua defesa da autoridade política do Rei sobre a educação contra a autoridade docente da Igreja. Em matéria de univer- sidade e educação, Ribeiro Sanches está nos antípodas do espírito iluminado que gerou o liberalismo. Se, por um lado, o Iluminismo invocava, e bem, o direito das gentes como direito natural, por outro lado Ribeiro Sanches tudo confiava, inclusive a religião, ao poder real, que assim ficava despótico sem o contrapoder da Igreja e da Sociedade Civil. Afastando a Igreja do seu papel tradicional no ensino (aliás legítimo, como instituição docente que é), e considerando todo o ensino escolar como direito e competência do Rei, não levanta a questão da verdade da religião, nem da melhoria do ensino; mas sim a da autoridade sobre a universidade e a própria educação religiosa — se pertence à Igreja, se ao Monarca — não podendo, como ele diz, essa educação cristã obedecer a dois monarcas.

A “OFICIALIZAÇÃO” REPUBLICANA JACOBINA DA UNIVERSIDADE

11. Mas não menos ofensivas do que essas, à autonomia do ensino universitário, foram as reformas políticas impostas à universidade e à escola pelo republicanis- mo jacobino que sucedeu ao despotismo iluminado. Logo em 1911, por um Decreto com força de Lei, foi em Portugal extinta a Faculdade de Teologia na Universidade de Coimbra. Desde então, e como é na- tural e legítimo, nasceu uma aspiração à sua justa restauração, na integralidade humanística universitária, que não pode excluir os estudos metafísicos e teológicos, perante o despótico laicismo jacobino do poder político. A uma persistente aspiração à restauração da Faculdade de Teologia, em Coimbra, que perdurou até aos fins do salazarismo publicamente anunciada pelos órgãos próprios da Universidade de Coimbra, juntou-se, a partir de certa altura, a aspiração à criação de uma autónoma universidade católica.

A UNIVERSIDADE NAPOLEÓNICA [E AS UCS]

12. Para bem se compreender que se tenha criado o projecto institucional próprio das universidades católicas, pela Europa inteira, é preciso ter presente que, a partir dos fins do séc. XVIII, mas sobretudo ao longo do séc. XIX, as universidades que existiam desde há séculos foram transformadas pelo poder político dos Estados num novo tipo de universidades, cujo protótipo se pode ver na universidade napoleónica, em que se impôs a expulsão da liberdade religiosa docente. Não cabe aqui caracterizar este novo tipo, que, com assinaláveis variantes, é comummente conhecido na sua evolução, desde então até aos nossos dias. Mas vale a pena ilustrar, ainda que em breves citações, o pensamento em que Napoleão conformou a universidade e foi aliás espalhado por toda a Europa. De um livro organizado por um conhecido historiador francês, Adrien Dansette, em que se reuniram declarações de Napoleão, podemos ler, por exemplo, os seguintes excertos, em nossa tradução para português.

[1] «Em França, é sabido, os parlamentos aliavam-se aos padres e aos monges para formar um poder formidável, capaz de en- frentar a corte, os senhores, numa palavra, a gente de espada. Quantas vezes os padres e os monges não salvaram a Europa da opressão das classes guerreiras e do poder militar. Juliano, para escapar ao poder dos bispos que se opunham ao seu poder, fez-se apóstata. A Revolução anulou, entre nós, o poder civil; é preciso recriá-lo e não podemos servir-nos dos elementos que o constituíam antigamente. O clero perdeu as suas riquezas, e não formará jamais uma ordem no Estado; para o futuro, o poder civil [político] não poderá deixar de comportar o corpo que terá a missão de formar a juventude e a magistratura encarregada de aplicar a justiça e fazer executar as leis. Para isso, é preciso tornar atraentes estas duas carreiras, através da esperança de uma grande consideração e de uma grande fortuna» 14 .

[2] «Não haverá Estado político firme se não houver um corpo docente com princípios firmes. Enquanto não se aprender, desde a infância, se se deve ser republicano ou monárquico, católico ou irreligioso, o Estado não formará uma nação; e repousará sobre bases incertas e vagas, constantemente exposto a desordens e a mudanças» 15 .

[3] «Nos Estados do Ocidente, os governos preocuparam-se pouco com a educação pública, particularmente depois da religião cristã, porque a educação era confiada ao clero; basta conhecer o espírito do clero para saber em que espírito a educação era então dirigida. [...] Se os reis de França se ocuparam pouco da instrução pública, essa pode ser uma razão para os imitar? [...] Pelo contrário, nós podemos supor que nada existe e tudo está por organizar de novo; é impossível continuar na situação actual, em que qualquer um pode abrir um estabelecimento educativo como pode abrir uma loja de tecidos» 16 .

[4] «De todas as nossas instituições, a mais importante é a instrução pública. Tudo depende disso. É preciso que a moral e as ideias políticas da geração que está a ser educada não dependa da novidade do dia, ou da circunstância do momento. Acima de tudo, é preciso chegar à unidade, e que uma geração inteira possa ser moldada pelo mesmo molde. Os homens diferem sempre muito pelas suas inclinações, pelo seu carácter e por tudo o que a educação não deve ou não pode reformar» 17 .

[5] «O meu principal objectivo, no estabele- cimento de um corpo de professores, é o de ter um meio de dirigir as opiniões políticas e morais; esta instituição será uma garantia contra o restabelecimento dos monges, e não mais me falarão disso; sem esse corpo de professores, os monges restabelecer-se- -iam mais tarde ou mais cedo» 18 .

[6] «Formemos um corpo de doutrinas que não varie e um corpo de professores que não morra. No seio do corpo de que farão parte, não será mais os seus próprios princípios e sentimentos recebidos que terão. Com efeito, como poderíamos nós, para formar outros homens, fiar-nos de homens que se tivessem formado a eles mesmos?» 19 .

[7] «O meu pensamento é que os religiosos seriam de longe o melhor corpo de ensino, se fosse possível dominá-los, subtraí-los a um chefe estrangeiro. Eu tenho simpatia por eles; talvez tivesse poder político para os restabelecer [no ensino]; mas eles tornaram-me isso impossível. Eu não faço nada por eles que eles me não dêem logo razão para me arrepender» 20 .

[8] «Em geral, eu organizei a Universidade em corpo, porque um corpo não morre jamais e porque assim há transmissão de organização, de administração e de espírito» 21 .

[9] «Nunca entendi que os professores fossem gestores dos estabelecimentos de ensino: seria ridículo; mas não quero que eles tenham um tratamento fixo e independente do número de alunos; quero que o seu tratamento seja em razão proporcional a esse número, a fim de os interessar no sucesso dos estabelecimentos. Não é aliás possível ter um tratamento uniforme; é preciso que seja graduado relativamente às localidades e ao mérito dos professores» 22 .

[10] «Eu penso que os seminários meno- res [em que têm lugar os primeiros anos de escolaridade na formação do clero], que são escolas secundárias como as outras, fiquem sob a supervigilância da Universidade. Quanto aos Seminários maiores [da escolaridade superior], só serão isentos dessa supervigilância a título de escolas especiais de teologia; eu não quero que os padres se intrometam na educação pública» 23 .

A INIMIZADE DO LAICISMO DE ESTADO CONTRA AS LIBERDADES DE EDUCAÇÃO E ENSINO

13. Já desde o bem conhecido jacobinismo que despontou inicialmente, ainda em ple- na Revolução Francesa, mas sobretudo a partir do imediato paradigma napoleónico, a história da educação escolar, em França, foi constantemente marcada por uma grande conflitualidade (que se mantém actualmente) do Estado laico, defensor de uma escola pública «laica», contra a escola privada, e especialmente contra a escola de inspiração católica. Com as conquistas imperialistas de Napoleão, e depois sem descontinuidade, a ideologia do Estado- -educador inundou os Estado europeus continentais, confirmando aliás os ante- riores ímpetos centralistas do despotismo iluminado sobre a educação. E, até hoje, o centralismo estadual tem geralmente prevalecido sobre a descentralização e a autonomia dos sistemas escolares europeus, com soluções menos intervencionistas e até autonomistas a verificarem-se em alguns países do centro e norte europeu, de maior influência democrata católica e protestante, como a Alemanha e a Bélgica 24 . Mas reto- memos o fio histórico do caso português.

PORTUGAL: A REIVINDICAÇÃO DE UMA UC NO SALAZARISMO

14. Muito significativo, na história do nosso País, foi que, em continuidade desde o despotismo iluminado, também o poder político ao longo da Segunda República (do Estado Novo), de facto recusou reco- nhecer a fundação de uma universidade católica — o que só aconteceu nos seus últimos tempos, do marcelismo, em 1991. Contudo, desde 1926, com a interrupção da Primeira República pela revolta mi- litar de Gomes da Costa, que se notara no Episcopado Português um sobressalto de esperança no termo das perseguições contra a Igreja e as liberdades de ensino, praticadas até então pelo jacobinismo de Estado. A Constituição de 1933 veio dar algum alento àquela esperança, porquanto estabeleceu claramente as garantias da liberdade religiosa e da liberdade de ensino 25 . Quanto a esta última, a Constituição era expressa em garantir a liberdade das escolas privadas, nestes termos: «é livre o estabelecimento de escolas particulares paralelas às do Estado, ficando sujeitas à fiscalização deste e podendo ser por ele subsidiadas, ou oficializadas para efeito de concederem diplomas quando os seus

programas e categoria do respectivo pessoal docente não forem inferiores aos dos estabelecimentos oficiais similares». E especificando ainda: «Não depende de autorização o ensino religioso nas escolas particulares» 26 .

O SALAZARISMO, UM HÍBRIDO DE REGALISMO JACOBINO NA POLÍTICA DO ENSINO

15. Mas, como já dissemos, Salazar nunca apoiou as escolas privadas, e discriminou- -as sempre, praticamente. Nem mesmo as escolas da Igreja, optando, pelo menos desde certa altura, por uma espécie híbrida de regalismo católico e de jacobinismo anti- -clerical de Estado oficiosamente católico. Com alguns episódios mais evidentes de discordância e até de impaciência, isso foi ao mesmo tempo beneficiado e suportado pela Igreja, que vinha de sofrer a grande tribulação bissecular do jacobinismo re- publicano. Exemplo daqueles episódios foi a homilia pública de protesto do Bispo D. Sebastião Soares de Resende, pelo facto de o Estado substituir por um liceu estatal uma escola da sua Diocese, decisão política esta mais chocante ainda por vir interromper a sequência de muitas iniciativas da Igreja no campo da educação, benéficas para as populações, que precediam as do Estado 27 . Outro exemplo foi o da histórica carta do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes 28 . Mais diplomática foi sempre a intervenção do Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, como Presidente da Conferência Episcopal; porém, ninguém o poderá acusar de falta de zelo e de insistências públicas na luta pela fundação da Universidade Católica e na defesa da liberdade de ensino. Pelo contrário; ele deve ser considerado um dos primeiros, se não o primeiro, de entre os seus indefectíveis defensores.

BREVE HISTÓRIA DAS REIVINDICAÇÕES POR UMA UC DURANTE O SALAZARISMO

16. Uma breve mas elucidativa síntese sobre a longa e penosa história das diligências da Igreja para a fundação de uma Universidade Católica em Portugal encontra-se nos artigos do bispo e professor universitário D. António Montes Moreira, onde também se remete para a principal bibliografia, na qual se destacam as contribuições do Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, e dos leigos e universitários ilustres, Guilherme Braga da Cruz e António de Sousa Franco 29 . Como relata Montes Moreira, «a criação de um instituto católico em Portugal foi proposta em dois congressos do Centro Católico Português (Lisboa, 1921 e 1922)». Mas «A legislação da I República impunha o monopólio do Estado para as faculdades civis e não autorizava o ensino religioso nas escolas particulares». No termo do regime jacobino republicano, aquela criação foi então «decretada pelo Concilio Plenário Português de 1926» 30 . Mas um decreto com pequenos efeitos práticos, e que não interrompeu, e pelo contrário animou, uma crescente reivindicação pela liberdade de ensino.

faculdade-ciencias-humanas2.pngPonto alto nesta reivindicação de liber- dade de ensino foi Congresso Nacional da Juventude Universitária Católica (JUC), em 1953. No qual (perdoe-se esta nota), o autor do presente texto participou pessoalmente, caloiro de Direito que então era em Coimbra, votando na unânime deliberação favorável à criação da Universidade Católica, aliás aplaudida de pé pela numerosa assembleia, onde se contavam reitores e professores de todas as universidades públicas, honra lhes seja feita. Entre as 37 conclusões e votos desse Congresso, aprovados por professores e alunos, as mais vibrantes aclamações de toda a assistência sublinharam a reivin- dicação de uma Universidade Católica, expressamente recomendada com estas palavras: “com as Faculdades e Institutos que a Hierarquia houver por bem considerar necessários à defesa e ao desenvolvimento da cultura superior católica”. 31 Adiante se recordará este mandato — da criação das «Faculdades e Institutos que a Hierarquia houver por bem considerar necessárias à defesa e ao desenvolvimento da cultura superior católica» — porque foi em sua execução que a Hierarquia depois incluiu a Faculdade de Ciências Humanas na fundação da Universidade Católica. Mas merece também ser sublinhado o fim que aí se atribui à Universidade Católica: «a defesa e o desenvolvimento da cultura superior católica».

O PROJECTO DA UC, COMO PROJECTO DE LIBERDADE UNIVERSITÁRIA

17. Se aqui se fazem estas anotações his- tóricas, é para recordar como, sem lugar a dúvidas, a gestação identificadora da fundação da Universidade Católica Por- tuguesa, nas suas três Faculdades iniciais, de Teologia, de Filosofia e de Ciências Humanas, foi a de reinstaurar, na inteira universidade portuguesa, o cultivo das ciências e da educação humanísticas na sua muito legítima inspiração cristã — a qual, como já foi dito, tinha vivificado a instituição da universidade desde há oito séculos —, e que o poder político tinha dela abusivamente expulsado. Com a cria- ção de uma universidade católica, o que portanto se pretendia era que também a inspiração universitária católica tivesse o seu lugar, institucionalmente fraterna, na inteira universidade portuguesa. Tratou- -se, em suma, de uma luta por liberdades fundamentais no seio da universidade: liberdades de aprender e de ensinar; liberdade religiosa; liberdade de escola; enfim, liberdade de tendência institucional numa universidade portuguesa pluralista, sem exclusões. Como se veio a reconhecer na filosofia que hoje está consagrada na Constituição da Terceira República, em matéria de direitos humanos e do princípio da não discriminação com base na religião.

É por isso justo afirmar e reafirmar que a Universidade Católica não é de modo nenhum — como alguns acusam — um «privilégio». Privilégio do exclusivo da liberdade e do financiamento público tiveram as universidades de Estado, du- rante cerca de duzentos anos, desde o pombalismo até ao fim do salazarismo. Como também a maior questão não é a de a classificar como pública ou privada — embora tenha sido instituída pelo Estado do Vaticano e reconhecida como tal por Portugal ao abrigo da Concordata, neste sentido indubitavelmente pública não estadual. Aliás, a distinção entre univer- sidades públicas e privadas é, entre nós (sem prejuízo das óbvias especificidades jurídicas administrativas), um caso de uma ilegítima e clamorosa discriminação política por parte do Estado, como até se anuncia ao mundo pelo facto de as universidades ditas privadas não serem participantes do assim chamado «Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas». Porventura as universidades privadas não são univer- sidades portuguesas?

Em suma, a Universidade Católica Portuguesa é, acima de tudo, uma vitória da liberdade universitária, nas condições históricas que, sem culpa sua, foram criadas no nosso País; vitória da liberdade que deve honrar a todos, e não só a Igreja Católica.

EXEMPLIFICAÇÃO DO NASCIMENTO DAS UCS

18. Aliás, o caso português não foi uma inovação. Pelo contrário, foi uma das mais tardias fundações de universidades católi- cas nos países do Ocidente. A fundação de autónomas universidades católicas é um significativo fenómeno dos séculos XIX e XX, em resposta à oficialização laicista das universidades, por parte do poder político de Estado — que as reformou segundo o espírito do modelo oficial napoleónico, como já foi referido. Novas universidades chamadas católicas são, por isso, apenas resposta a uma exclusão; uma forma de restauração integradora da universalidade humanista da universidade.

O caso histórico, que parece ter tipifi- cado esta inovação, foi o da Universidade de Lovaina. Como é sabido, em 1830 o Estado belga tornou-se independente dos Países Baixos; e, na sequência de lutas mais antigas, começou aí a história da Bélgica moderna. Uma das fortes razões desta independência relaciona-se precisamente com a religião. Os belgas eram católicos, e sentiam-se por isso mal tratados na sua identidade pelos poderes políticos, umas vezes laicos, como com Napoleão, outras vezes protestantes, como com os Países Baixos. A questão da universidade liga-se aqui. Após a independência da Bélgica, criou- -se uma universidade católica em Malines, que pouco depois (em 1835) foi transferida para Lovaina — onde, em 1425, tinha sido criada uma universidade por bula do Papa Martinho V, encerrada em 1797 pelo poder napoleónico 32 . Contra a criação dessa uni- versidade católica, as outras universidades protestam — e é nesta reacção significativa que, em resposta, nasce em Bruxelas uma nova universidade, intitulada Universidade Livre, de iniciativa publicamente maçónica. Por aqui se vê a duplicidade na questão: os mesmos que querem negar à Igreja uma universidade católica, respondem com uma universidade maçónica. O que negam aos outros praticam eles mesmos. Foi neste contexto conflitual, em que a iniciativa católica não desejava excluir ninguém e em que era ela a excluída, que a Univer- sitas Catholica Lovaniensis, na tradição da antiga universidade, ganhou prestígio internacional, e se tornou paradigmática para o mundo católico.

O CASO DA IRLANDA, COM O CARDEAL NEWMAN

19. Este exemplo inspirador teve uma notável influência e fecundidade na histórica fundação de outra universidade católica, na Irlanda, especialmente marcada pelo facto de ter sido defendida pelos famosos nove «Discursos sobre o fim e a natureza da educação universitária», compostos em 1852 por John Henry Newman, Cardeal da Igreja Católica, que permanecem obra de referência incontornável no pensamento católico sobre a ciência e a educação universitárias humanísticas. Ao lado de outras, esta obra de Newman devia ser de estudo crítico obrigatório em toda a Universidade Católica, no âmbito de uma específica disciplina de formação humanista e cristã — como, por exemplo, tem sido prosseguida através da disciplina pluri- -anual chamada «Tradição dos Grandes Livros». Reforçando, assim, na dimensão educativa, a atenção que esta problemática, da «ideia da universidade» e da sua missão na sociedade, efectivamente merece 33 .

A fundação de autónomas universidades católicas é um significativo fenómeno dos séculos XIX e XX, em resposta à oficialização laicista das universidades, por parte do poder político de Estado — que as reformou segundo o espírito do modelo oficial napoleónico, como já foi referido

A Universidade Católica da Irlanda, sediada em Dublin, foi fundada em 1851, de acordo com o Sínodo de Thurles de 1850, e formalmente estabelecida em 1854, tendo então por Reitor o Cardeal Newman. Mais tarde, surgiram outras universidades católicas, de entre as quais, a Universidade Católica italiana do “Sacro Cuore”, de Mi- lão, fundada em 1921, que abriu com 68 estudantes em dois primeiros cursos, de Ciências filosóficas e de Ciências sociais.

Actualmente, e segundo um censo da Congregação para a Educação Católica, do Vaticano, o número total de Universidades Católicas e Instituições de ensino superior em todo o mundo é de 1.358; e a Ordem Religiosa Católica com o maior número de universidades é a Companhia de Jesus, com 114. Salvo erro, em Espanha há 14 universidades de identidade cristã 34 ; em França, há seis 35 ; em Itália, há dez 36 : no Brasil, há ainda mais 37 .

AS UCS COMO VITÓRIAS DA LIBERDADE CONTRA O JACOBINISMO UNIVERSITÁRIO

20. Em suma, a história em que enraíza a Universidade Católica Portuguesa é a de uma pacífica aspiração à liberdade universitária, no exercício das liberdades pessoais dos cidadãos católicos, que nasceu pela Europa inteira nesta forma específica, e não apenas em Portugal. Liberdades de pensamento teológico, filosófico e científico; liberdades de educação. Sem discriminação pelo Estado. Nunca se tratou de outra coisa, como agora se torna evidente; mas apenas do legítimo exercício de liberdades humanas fundamentais. Por isso mesmo, é grande vergonha ter a sua criação sido abusivamente combatida pelo Estado, e ainda hoje ser discriminada em vários e importantes aspectos da sua regulação institucional e sobretudo quanto ao financiamento público, monopolizado pelas universidades do Estado.

 


 

1 Por comodidade, usar-se-ão frequentemente algumas siglas neste ensaio: UCP, por Universidade Católica Por- tuguesa; FCH, por Faculdade de Ciências Humanas; UC e UCs, por universidade católica e universidades católicas.

2 Cf., designadamente, arts. 2o e 3o da Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo, Lei no 9/79; e arts. 1o, 2o e 55o da Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei no 46/86.

3 Note-se que, no no 2 do art. 76o, a actual Constituição Portuguesa consagra a autonomia da Universidade.

4 D. António Ferreira Gomes, Antologia do seu pensam- ento, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, vol. 3, s.d. (1990?), p. 31.

5 Escandalosamente, esta prática inconstitucional con- tinua em nosso tempo, alimentada por uma propaganda jacobina e maniqueia da «escola pública» contra a «escola particular e cooperativa», que se manifesta sem pudor em sucessivos episódios políticos, dos mais chocantes. Desde cartazes do partido do Governo em defesa da «escola pública», implicitamente contra a escola privada (quando a verdade é que ninguém ataca a escola pública e o que se critica é a discriminação entre os alunos das escolas públicas e os das escolas privadas), até declarações de governantes as mais contrárias à democracia pluralista da nossa Constituição e aos direi- tos humanos fundamentais da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU — como no caso histórico do então Primeiro Ministro Sócrates, que disse isto, em debate televisivo (contra Paulo Portas), sobre a liberdade de escolha da escola: «a liberdade de escolha [da escola] é pura demagogia».

6 Recordem-se as pomposíssimas cerimónias da inau- guração da reforma, transformadas numa glorificação política de Pombal.

7 Documento muito expressivo da gravidade e da dificul- dade política da questão é o das reflexões do Rei D. Pedro V, sobre o ensino púbico e privado.

8 Além da recusa no reconhecimento jurídico de uma universidade católica, o regime de Salazar nunca apoiou o ensino privado, e pelo contrário.

9 V., a propósito, Jorge Buesco, Matemática em Portugal, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2012.

10 Para uma das últimas análises sobre a longa crise da universidade portuguesa, já no termo do Estado Novo, cf. Adérito Sedas Nunes, A situação universitária portu- guesa», 1971.

11 Cf. J. P. Miller Guerra e A. Sedas Nunes, A crise da Universidade em Portugal: reflexões e sugestões, in A. S. Nunes, org., “O problema político da Universidade”, Publicações Dom Quixote, Lisboa,1970.

12 Cf. Ribeiro Sanches, “Dificuldades que tem um reino velho para emendar-se e outros textos. Selecção, apre- sentação e notas de Vítor de Sá”, Ed. Inova, Porto, s. d., pp. 107-108-109.

13 Ibidem, p. 111.

14 Cf. Adrien Dansette (coord.), Napoléon, “Vues poli- tiques”, Fayard, Paris, 1939, p. 222.

15 Id., p. 213.

16 Id., pp. 210-211.

17 Id., pp. 211-212.

18 Id., p. 224.

19 Id., p. 225.

20 Id., pp. 225-6.

21 Id., p. 226.

22 Id., p. 231-232.

23 Id., pp. 234-235.

24 Sobre a problemática dos sistemas de educação, a bibliografia é abundantíssima. Para o caso francês, especialmente representativo, merece destaque um livro de Gérard Leclerc, que «seguiu durante alguns anos o dossier do ensino privado para o jornal Le Quotidien de Paris», e depois empreendeu escrever uma história mais alargada e reflexiva, a que deu o seguinte título: «La ba- taille de l’école. 15 siècles d’histoire. 3 ans de combat», Denoël, Paris, 1985».

25 Dizia o art. 8o da Constituição de 1933: «Constituem direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses: [...] a liberdade e a inviolabilidade de cren- ças e de práticas religiosas...; [...] a liberdade de ensino».

26 Art. 43o. Quanto ao ensino oficial, o texto constitucio- nal primitivo de 1933 estabelecia: «O ensino ministrado pelo Estado é independente de qualquer culto religioso, não o devendo porém hostilizar...». Significativamente, a Lei no 1910, de 1935, veio alterar este regime constitucio- nal do «ensino ministrado pelo Estado», e estabelecer o seguinte: «O ensino ministrado pelo Estado visa, além Desde a revisão da Constituição Política de 1933, pela Lei 1910, de 23 de Maio de 1935, o § 3 do art. 42o da Con- stituição estabeleceu o seguinte: «O ensino ministrado pelo Estado visa, além do revigoramento físico e do aperfeiçoamento das faculdades intelectuais, à formação do carácter, do valor profissional e de todas as virtudes morais e cívicas, orientadas aquelas pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais no país». E uma outra que dizia: o ensino ministrado pelo Estado visa, além do revigoramento físico e do aperfeiçoamento das faculdades intelectuais, à formação do carácter, do valor profissional e de todas as virtudes morais e cívicas, orientadas aquelas pelos princípios da doutrina moral cristãs, tradicionais no País» (art. 42o).

27 O bispo D. Sebastião Soares de Resende foi uma ilustre figura de intelectual e teólogo, que de modo veemente se manifestou em defesa da restauração da universidade no seu espírito humanista integral. De um belo ensaio sobre o seu perfil biográfico, da autoria do bispo Carlos Moreira Azevedo, extraem-se passagens como estas: «Defende que a Teologia é essencial a uma Universidade. «Uma Universidade sem uma faculdade de Teologia não pode ser realmente uma verdadeira Universidade». «Quando havemos de reatar o fio luminoso das escolas de Coimbra e Évora, reconquistando a nossa posição intelectual na história do pensamento». «Sente descontentamento pela restrição que vive o pensamento intelectual católico de então.» Cf. Carlos Moreira Azevedo, Perfil biográfico de D. Sebastião Soares de Resende, [http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4914/1/ LS_S2_06_%20CarlosAMAzevedo.pdf].

28 Extractos de “Breve Perfil Biográfico”, por Carlos Moreira Azevedo [http://www.fspes.pt/biografia.html]: «Nenhum dos seus escritos foge ao carácter pastoral. Não escreveu tratados temáticos nem manuais. O con- junto da sua obra proporciona critérios bem alicerçados para os ouvintes ficarem habilitados no discernimento da realidade e da história segundo os princípios do human- ismo personalista cristão. Uma ou outra vez acedeu a in- sistências para escrever textos introdutórios. Um deles é a Saudação para a “Lusitania Sacra” (1 (1956) 7-15). Aqui critica o historicismo como naufrágio da história, lança alguns desafios para o fazer de uma «história arquitec- tónica», como combinação de ciência, arte e filosofia. A História devia chegar a «disciplina total», compreender e respeitar a tradição por consideração para com a vida e traçar visões panorâmicas de conjunto, irradiar uma profunda filosofia da história.». Sobre D. António Ferreira Gomes, além de ampla bibliografia, cf. Paulo Bernardino (coord.), “Profecia e Liberdade em D. António Ferreira Gomes - Actas do Simpósio”, Ed. Ajuda à Igreja que sofre, 2000.

29 Cf. o artigo Universidade Católica Portuguesa de An- tónio Montes Moreira, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. IV, pp. 310-314, Lisboa 2001, Círculo de Leitores e Centro de Estudos de História Religiosa da UCP.

30 Pelo que se poderá dizer que, em projecto impedido pelo poder político e como fundação canónica inicial, a Universidade Católica Portuguesa tem cerca de cem anos.

31 Cfr Adelino Gomes, A JUC, o jornal Encontro e os pri- meiros inquéritos à juventude universitária. Contribu- tos para a história das modernas ciências sociais em Portugal, in : “Sociologia, problemas e práticas”, n.o 49, 2005, pp. 95-115.

32 Entre a extinção da primitiva Universidade de Lovaina, efectivada pelo poder napoleónico em 1797, e a restau- ração da universidade de Lovaina como Universidade Católica de Lovaina, em 1835, ainda mediou por algum tempo em Lovaina uma Universidade de Estado, criada em 1816, durante o poder político dos Países Baixos na Bélgica.

33 Registe-se que, na colecção de orações de sapiência pronunciadas ao longo de vários anos na FCH, reunidas recentemente no livro comemorativo do aniversário da Faculdade [José Miguel Sardica (org.), Orações de sapiên- cia, UCE, 2016], encontram-se numerosas referências a esta problemática, da ideia e da missão da universidade, mostrando que a questão continua viva. Em especial na oração de sapiência de Luísa Leal de Faria, intitulada “A ideia da Universidade e a formação da intelligenzia”. E recorde-se que foi também sobre a Universidade, a sua situação e missão, que nos anos 50 e 60 entre nós se dinamizou a reflexão crítica sobre o ensino e a cultura, inclusivamente política.

34 Universidad Pontificia de Salamanca, Universidad Pontificia Comillas, Universidad de Navarra, Universidad de Deusto, Universidad Católica de Ávila, Universidad Católica de Murcia, Universidad Católica de Valencia, Universidad San Pablo CEU, Universidad Abat Oliva CEU, Universidad Cardenal Herrera CEU, Universidad Ramón Llull, Universidad Francisco de Vitoria, Universidad San Jorge y Universidad Loyola Andalucía.

35 Centro Sèvres; Instituto Católico de Paris; Universi- dade Católica de Toulouse; Universidade Católica de Lille; Universidade Católica do Oeste; Universidade Católica de Lyon.

36 Pontifícia Universidade de Santo António; Pontifícia Universidade de Santo Bonaventure; Pontifícia Univer- sidade Santo Tomás de Aquino; Universidade Católica do Sagrado Coração; Ateneu Pontifício Regina Apostolorum; Pontifícia Universidade Urbaniana; Pontifícia Universi- dade Gregoriana; Pontifícia Universidade Lateranense; Pontifícia Universidade Salesiana; Pontifícia Universidade da Santa Cruz.

37 Universidade Católica de Petrópolis; Universidade Católica Rainha do Sertão; Pontifícia Faculdade de Teolo- gia Nossa Senhora da Assunção; Pontifícia Universidade Católica de Campinas; Pontifícia Universidade Católica de Goiás; Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Pontifí- cia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Universidade Católica do Salvador; Universidade Católica de Santos; Universi- dade Católica de Brasília; Universidade Católica de Per- nambuco; Faculdade Católica do Tocantins; Universidade Católica de Pelotas.


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