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Espinosa e a Democracia


Espinosa e a Democracia

Há pelo menos duas razões por que o novo livro de Diogo Pires Aurélio (DPA), O Mais Natural dos Regimes. Espinosa e a Democracia, deveria ser considerado de antemão um dos acontecimentos ensaísticos do ano em língua portuguesa.

Diogo Pires Aurélio
O Mais Natural dos Regimes. Espinosa e a Democracia
Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2014

por André Santos Campos André Santos Campos

Research Fellow IFL / Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa

Em primeiro lugar, porque condensa a reflexão académica de DPA ao longo dos últimos 30 anos em torno da obra daquele que é provavelmente o único dos grandes filósofos mundiais com uma ligação relevante a Portugal. Com efeito, Espinosa (1632-1677), embora tenha nascido em Amsterdão e vivido sempre na Holanda de Seiscentos, tinha ascendência portuguesa (com raízes na Vidigueira, no Alentejo) e cresceu no interior da então enorme comunidade judaica portuguesa de Amsterdão, radicada nos Países Baixos devido à perseguição inquisitorial que se levava a cabo em Portugal. O facto de haver não mais do que 4 teses de doutoramento defendidas nas universidades portuguesas sobre a filosofia de Espinosa deveria causar perplexidade a qualquer cultor da relação entre as humanidades e alguns vestígios de portugalidade. Nestas circunstâncias, a publicação de um novo livro que não só auxilia a superar tamanha escassez como ainda contribui para a divulgação da filosofia de Espinosa perante um público mais vasto do que o meramente espinosista merece desde logo ser destacada.

Em segundo lugar (e mais importante ainda), porque o autor se propõe abordar a dimensão política daquela que foi «a primeira e a mais sistemática defesa da democracia, em toda a história do pensamento moderno» (p. 38). Esta catalogação torna este livro sobre Espinosa original: embora pareça óbvia a existência de uma filosofia política em alguém que publicou obras intituladas Tratado Teológico-Político e Tratado Político, nem sempre isso foi assim considerado. Os estudos espinosistas estiveram, durante séculos, acantonados na metafísica ao ponto de Espinosa nem sequer figurar em muitos compêndios da história do pensamento político; quem quisesse aprofundar a vertente política da filosofia de Espinosa há 50 anos atrás, teria de se contentar apenas com um punhado de comentários relevantes que se não dedicasse exclusivamente às partes I e II da sua obra-prima, a Ética, ou que não reduzisse Espinosa a uma versão determinista e democrata de Hobbes. Só a partir dos anos 60 do século passado, sobretudo a partir do estabelecimento francófono do eixo Espinosa-Marx emergindo do círculo de discípulos de Louis Althusser, é que passou a ser reconhecida a existência de uma filosofia política original a Espinosa contida nos seus tratados políticos. Hoje, ao invés, a explosão de produção bibliográfica sobre a política de Espinosa levou a uma abundância de textos facilmente consultáveis – mas não em português. Este livro de DPA preenche esse espaço embranquecido que é o panorama filosófico-político português sobre Espinosa.

Esta publicação é tanto mais relevante quanto se nota a sua insistência em debater com todas as derivas interpretativas que vêm recorrendo ao nome de Espinosa para fundamentar as suas teses. Uma filosofia de sistema tão ampla como a espinosista tem um efeito de inclusão muito forte a que não escapa a dimensão política. Daí ser tão fácil encontrar paralelos (sobretudo em estudos franceses e italianos) entre Espinosa e alguns pressupostos do marxismo, como outros paralelos (sobretudo em língua inglesa) entre Espinosa e os princípios fundamentais do liberalismo – dir-se-ia comummente que Espinosa tem as costas largas em política. Ademais, os últimos anos têm assistido à proliferação de um novo género de recurso ao espinosismo, o qual não enfrenta directamente as discussões metafísicas da Ética nem se propõe analisar os tratados políticos de Espinosa, mas ao invés aborda problemas filosófico-políticos contemporâneos ligados à teoria da chamada democracia radical a partir do enquadramento conceptual espinosano. É o que pode ser verificado em textos de António Negri, Michael Hardt, Warren Montag, Moira Gatens, ou Hasana Sharp. Uma das grandes virtudes do livro de DPA consiste em conseguir dialogar criticamente com todas essas derivas sem perder o lastro de um apegamento interpretativo dos textos escritos pelo punho do próprio Espinosa.

Aqui poderão ser encontradas todas as grandes teses por que DPA se tem batido ao longo destas décadas de leitura de Espinosa, muitas delas delineadas com um rigor mais aprimorado no seu Imaginação e Poder. Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa (Colibri, 2000): a defesa da política espinosana como um espaço de afectos e de imaginação, mais do que de raciocínios e razão; o apelo ao entendimento do individualismo espinosano enquanto metodológico (próximo do sentido introduzido por Max Weber) na sua estrutura básica; a rejeição de um estatuto ontológico do Estado; a definição de Estado em Espinosa a partir do conceito de “configuração” remontando a Norbert Elias; a necessidade de uma dimensão institucional presente na ideia de potestas que auxilie a corporizar as decisões da potência da multidão (no que opera como uma rejeição explícita das célebres teses de António Negri que bebem em Espinosa o fundamento da sua oposição às tradicionais formas estruturais de poder político); ou a importância de se entender o Estado em Espinosa não como um promotor da razão, mas como um garante seguro do livre exercício da razão.

Estas teses vão surgindo ao longo do texto no sucedâneo de argumentos e análises aí explanados. O livro divide- -se em três partes. A primeira parte, já publicada como introdução à tradução portuguesa do Tratado Teológico-Político (a que se soma entrementes um texto sobre Espinosa e Wittgenstein publicado originalmente em língua inglesa), resume com eficácia os problemas e os desafios suscitados pelo mais controverso dos textos de Espinosa, não se furtando a discussões difíceis em torno do papel constitutivo da imaginação e das paixões em política, da especificidade de um direito civil não-deontológico, do estatuto ficcional e complexo que o contrato social assume em Espinosa, ou da natureza do Estado na sua relação com um indivíduo que seja em simultâneo súbdito e cidadão. A segunda parte reúne textos dispersos sobre a política de Espinosa entretanto apresentados em encontros internacionais em Madrid, Évora ou São Paulo, focando- se sobre a existência de um afecto comum constituinte do político, sobre o conceito de potestas, e sobre os fundamentos do corpo político a partir de uma comparação com o normativismo de Hans Kelsen. Por fim, a terceira parte reproduz a introdução à tradução portuguesa do Tratado Político e acaba por reunir todas as grandes teses já referidas que fizeram de DPA o maior especialista na filosofia política de Espinosa em Portugal (e, a par de Marilena Chaui, porventura também em língua portuguesa, o que não é pouco tendo em vista o crescimento quantitativo e qualitativo por que têm passado recentemente os estudos espinosistas no Brasil). Tudo isto é precedido de um curtíssimo prefácio sintetizando a perspectiva do autor sobre a política em Espinosa e de uma introdução esclarecendo a riqueza do conceito de democracia no enquadramento conceptual espinosano.

Tal introdução acaba por ser um dos mais importantes textos de toda a obra, até porque, se não chega a explicitar ou apresentar ao leitor menos assíduo de Espinosa as suas teses primordiais, estabelece de antemão o contexto temático de qualquer abordagem séria ao pensamento político em análise. Aí se justifica afinal o título da obra. A democracia, para Espinosa, não é apenas um regime político entre outros, mesmo que o preferível (ou o menos repugnante); é sobretudo, ao arrepio da tradição hegeliana e em comum com as linhas fundamentais do marxismo (no que não deixa de ser uma excepção na leitura que DPA costuma fazer de Espinosa), «horizonte de refundação permanente do demos» (p. 34) e «razão de ser da política» (p. 42), isto é, a verdade da política a que se chega como conclusão necessária a partir de uma ontologia que rejeita a transcendência e o finalismo. Este ponto de partida demarca toda a proximidade ao restante livro.

Todavia, é também a partir daqui que o próprio livro suscita algumas dificuldades. Em primeiro lugar, não deixa de permanecer no leitor de toda a obra, chegando à sua última página, que o título e o subtítulo se encontram na ordem inversa daquela em que deveriam estar. De facto, este é um livro sobre “Espinosa e a democracia” (não “Espinosa sobre a democracia”), no sentido de “verdade da coisa política propriamente dita”, mais do que um livro sobre democracia tout court ou sobre “o mais natural dos regimes”, frase decalcada do Tratado Teológico-Político que mais aponta para a ordem de preferência da democracia enquanto regime político do que para a base justificativa do político com que DPA a interpreta.

Em segundo lugar, sendo verdade que a entrada neste livro pressupõe um conhecimento mínimo do pensamento político de Espinosa (será um erro recorrer a este texto como primeira porta de acesso à política de Espinosa) e portanto, embora destinado a um público mais vasto do que os espinosistas de língua portuguesa, não se dirige simplesmente ao público em geral, também é verdade que poderia haver uma atenção mais cuidada na maneira como os textos são apresentados ao leitor pouco familiarizado com os trabalhos de Espinosa e de DPA. Por exemplo, o livro não contém uma lista de abreviaturas que pudesse ajudar a decifrar as explicações pouco ordenadas do que significam as siglas TTP, TP ou G, tão usuais nos estudos espinosistas mas frequentemente desconhecidas de outros meios filosófico- políticos. Por outro lado, tendo em vista que a maior parte do livro reproduz textos já publicados noutros tempos e noutras edições, seria relevante deixar o leitor tomar conhecimento dessas referências bibliográficas (ou providenciar uma justificação por que o autor as considera capazes de uma unidade temática tamanha que dispense essas referências originais).

Com efeito, a maior carência deste livro é provavelmente a indeterminação de uma unidade argumentativa referente ao tema especificado. Embora as partes I e III se ordenem facilmente em virtude de uma unidade temática e cronológica, não chega a ser bem clara a presença de um critério explicativo da intermediação dos textos contidos na parte II, o qual em última análise justificaria a republicação de textos já acessíveis. O primeiro capítulo dessa parte II, sobre a importância constitutiva do mecanismo da imitação dos afectos na política ajuda a fazer a ponte (sobretudo conceptual e cronológica) entre o Tratado Teológico-Político e o Tratado Político, visto que tal mecanismo surge explanado pela primeira vez na Ética, o texto que Espinosa terminou entre a elaboração de um e o outro dos tratados políticos. O mesmo não se poderá dizer com tanta facilidade dos textos sobre a potestas e sobre o fundamento da política em Espinosa e em Kelsen, sobretudo quando o disposto num parece por vezes contradizer o disposto no outro. Note-se, por exemplo, como DPA equipara a oposição espinosana às “teorias puras” (ou melhor, “depuradas”, de metafísica, de epistemologia, de antropologia) ao sistema normativo de Kelsen (p. 258) ou como critica a interpretação do Estado como estrutura qualificando-a como similar ao Estado de Kelsen (p. 405), para em seguida perspectivar a questão do fundamento do direito em Espinosa aproximando-a deliberadamente dos termos em que a formula Kelsen (p. 296). A distinção que o autor faz do papel da potestas na sua relação de enriquecimento mútuo com a potência da multidão (v. sobretudo p. 263) não deveria, ao invés, equiparar a validade (e a natureza validante) da norma fundamental de Kelsen ao direito civil da potestas em Espinosa e menos à natureza mesma do direito espinosano, o qual deriva necessariamente da sua filosofia da natureza? O remanescente do livro não esclarece estas questões, no que poderá funcionar como um apelo a esclarecimentos futuros.

A democracia, para Espinosa, não é apenas um regime político entre outros, mesmo que o preferível (...) «horizonte de refundação permanente do demos»

Espinosa e a DemocraciaContudo, de nada servirá aos interessados em teoria política o esperarem por desenvolvimentos interpretativos se não começarem por reconhecer a importância da contribuição de Espinosa para a sua história – e, com a publicação deste livro, deixa de haver maneira de o fazer em língua portuguesa que não passe pela necessidade de se tornarem leitores atentos, quer de Espinosa, quer de DPA. Se há algo que ressalta do livro de DPA é uma frescura temática que está à altura da importância do pensamento político que pretende analisar. E isso torna este O Mais Natural dos Regimes, por si só, num livro que se impõe como obra incontornável dos novos estudos políticos em língua portuguesa.


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