O Papa Francisco e a Encíclica «Lumen Fidei»
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Quando, há alguns meses, o Papa Francisco se dirigiu a quantos se aglomeraram na Praça de São Pedro e acompanhavam o anúncio da sua eleição nos meios de comunicação social, fez questão de falar para todos os homens e mulheres de boa vontade numa abrangente palavra de renovação e de esperança. |
Miguel Real |
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Quando, há alguns meses, o Papa Francisco se dirigiu a quantos se aglomeraram na Praça de São Pedro e acompanhavam o anúncio da sua eleição nos meios de comunicação social, fez questão de falar para todos os homens e mulheres de boa vontade numa abrangente palavra de renovação e de esperança. |
Miguel Real |
por
Guilherme
d’Oliveira
Martins
Presidente do Tribunal de contas. Membro do conselho editorial de Nova Cidadania
Mais do que uma palavra era indispensável um gesto. A indicação do nome escolhido e a atitude foram dois sinais dignos de nota. As mensagens fundamentais foram para todos sem exceção e basearam-se na modéstia e na entrega. A personalidade do Cardeal Jorge Bergoglio é cativante e a invocação do nome escolhido de Francisco foi significativa. Num tempo de imediatismo e de indiferença, de crise de valores e de perplexidade não pode passar despercebido o facto de escolher a referência de um Santo de proximidade, de pobreza e de amor. S. Francisco de Assis simboliza o desprendimento, a entrega, a compreensão e o diálogo com a natureza. Perante uma crise marcada pelo imediatismo, pela ilusão e pela ânsia dos ganhos fáceis, é importante que haja um apelo aberto a todos no sentido de colocar a dignidade humana no centro das nossas preocupações e prioridades.
Agora, ocorre a publicação da encíclica
«Lumen Fidei», que constitui um
acontecimento que merece especial atenção.
O texto é de grande interesse. Aconselho
a sua leitura cuidada neste tempo
estival. Bento XVI já nos tinha anunciado
que completaria o ciclo das encíclicas relativo
às virtudes teologais, e eis-nos perante
um texto denso e fecundo, subscrito
e completado pelo Papa Francisco, num
gesto aberto, justo e generoso. Notam-se
os contributos dos dois pontífices que intervieram
na elaboração da carta encíclica,
mas estamos perante um documento
eclesial que não deve ser considerado de
mera autoria individual, apesar da influência
evidente dos seus autores. A síntese
é sabiamente ilustrativa: «a fé não é a luz
que dissipa todas as nossas trevas, mas uma lâmpada que guia os nossos passos na
noite e isto basta para o caminho». Fé e razão
são faces da mesma moeda, e é importante
que o entendamos. Lembramo-nos
do diálogo entre Habermas e Ratzinger, e
percebemos que ambos tiveram a inteligência
de encontrar um elo forte ventre
razão e fé. Afinal, relativismo e pluralismo
não podem confundir-se (como lembraram
Popper, Berlin e Dworkin). Se é certo
que vivemos numa sociedade marcada
pelas diferenças e pela liberdade, como
no-lo ensinou o Concílio Vaticano II, não
é menos verdade que os valores espirituais
têm de ser considerados, como fatores de
compreensão dos limites e da consciência
da responsabilidade. Como disse o Padre
M. D. Chenu, «o cristianismo é o mistério
de Cristo que vive, morre e ressuscita em
mim e em cada um». Numa boa tradição
nova, iniciada com Bento XVI, a encíclica
cita, além dos documentos da Igreja, autores
de uma cultura secular, em nome de
uma sã abertura ao mundo, de Nietzsche
a Dostoievski. Por isso, recorda que «o luz, antes abrindo caminho da liberdade
pessoal. E a encíclica recorda que «é conhecido
o modo como o filósofo Ludwig
Wittgenstein explicou a ligação entre a fé
e a certeza. Segundo ele, acreditar seria
comparável à experiência do enamoramento,
concebida como algo de subjetivo, impossível de propor como verdade válida
para todos (LF, 27). A dignidade da pessoa
humana como noção irrepetível obriga
a entender os caminhos da fé e da razão
como complementares e incindíveis.
«Devido (…) à sua ligação com o amor,
a luz da fé coloca-se ao serviço concreto
da justiça, do direito e da paz. A fé nasce
do encontro com o amor gerador de Deus
que mostra o sentido e a bondade da nossa
vida; esta é iluminada na medida em
que entra no dinamismo aberto por este
amor, isto é, enquanto se torna caminho e
exercício para a plenitude do amor. (…) A
fé é um bem para todos, um bem comum:
a sua luz não ilumina apenas o âmbito da
Igreja nem serve somente para construir
uma cidade eterna no além, mas ajuda
também a construir as nossas sociedades
de modo que caminhem para um futuro
de esperança (LF, 51). Num tempo em que
o imediato parece fechar os caminhos de
saída para a crise, é tempo de olhar o horizonte
e de pôr a nossa vontade ao serviço
das pessoas e do bem comum. E os sinais
dados pelo Papa Francisco de abertura,
amor e justiça são encorajantes. «Quando
a fé esmorece, há o risco de esmorecerem
também os fundamentos do viver, como
advertia o poeta T.S. Eliot: “Precisais porventura
que se vos diga que até aqueles
modestos sucessos / que vos permitem
ser orgulhosos de uma sociedade educada
/ dificilmente sobreviveriam à fé, a que
devem o seu significado?”» (LF, 55).
Os valores espirituais têm de ser considerados, como fatores de compreensão dos limites e da consciência da responsabilidade
Temos de dar um valor acrescido à dignidade da pessoa humana, em nome da liberdade e da responsabilidade, da igualdade, da não exclusão. Precisamos de exemplos de atenção, de cuidado, de presença! E se vivemos a crise e a provação, se precisamos de sobriedade – eis que o Sumo Pontífice nos diz que a atenção e o cuidado, o exemplo e a experiência são exigências para os cristãos. «Para Deus não somos números; somos importantes, antes somos o que Ele tem de mais importante; apesar de pecadores, somos aquilo que Lhe está mais a peito». Estas reflexões são especialmente oportunas no momento em que agradecemos a D. Manuel Clemente o extraordinário testemunho que deu na cidade do Porto e a muita esperança e alegria como é recebido na chegada como novo Patriarca de Lisboa. Todos temos a ganhar numa partilha de compromisso e de tomada de consciência de que a crise que vivemos exige respostas determinadas, em nome da verdade e da justiça.
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