Este livro é resultado de uma longa tradição evolutiva, ela própria assente em, e resultante de várias tradições, bem como do diálogo e interação entre elas |
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Liberdade como Tradição - Um olhar Euro-Atlântico sobre a cultura política marítima de língua inglesa |
Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Director de Nova Cidadania
Muito boa tarde a todos.
Muito obrigado pela vossa presença. Muito obrigado em primeiro lugar aos alunos desta cadeira de “Teoria Política Contemporânea”, regida por Professor Orlando Samões. Um obrigado especial aos não-alunos, caros e distintos colegas e amigos, que têm a amabilidade de estar connosco neste horário não particularmente fácil – 14 horas, numa terça-feira.
Last but certainly not least, um imenso obrigado ao meu colega Professor Orlando Samões, Regente desta cadeira de Teoria Política Contemporânea, que muito amavelmente me convidou a estar aqui hoje convosco para apresentar o meu livro Liberdade como Tradição: Um olhar euro-atlântico sobre a cultura política marítima de língua inglesa, muito amavelmente publicado pela distinta editora D. Quixote – por muito amável convite do seu Diretor, Dr. Duarte Bárbara, ele próprio antigo aluno do IEP, nas anos idos de 2002.
Creio que o título deste livro, “Liberdade como Tradição”, se aplica também com rigor surpreendente ao processo de génese e evolução gradual, por ensaio e erro — trial and error, na consagrada expressão inglesa — do próprio livro. É um livro novo, mas não é produto de uma revolução nem do chamado “absolutismo da inovação”, a expressão consagrada por Edmund Burke a propósito da Revolução Francesa de 1789. Pelo contrário, este livro é resultado de uma longa tradição evolutiva, ela própria assente em, e resultante de várias tradições, bem como do diálogo e interação entre elas.
A primeira dessas tradições foi já aqui tocantemente referida por Professor Orlando Samões. Foi e tem sido a tradição de lecionação na Universidade. Comecei a lecionar tentativamente alguns — talvez 4 ou 5, dos 14 autores tratados neste livro — na Universidade de Stanford, na Califórnia, na Primavera de 1996. Trouxe depois esse programa inicial para a Universidade Católica Portuguesa, em Setembro desse mesmo ano de 1996, onde inaugurei – a convite do Professor Mário Pinto e em conjunto com o Professor Manuel Braga da Cruz – o Mestrado em Teoria e Ciência Política, que viria dois anos depois a dar origem ao IEP. Ao longo destes 27 anos, mantive, corrigi, e certamente ampliei — numa palavra, reformei, sem recurso a revoluções — aquele programa inicial, com a ajuda de vários jovens Assistentes que são hoje meus colegas e professores nesta casa.
Mas também inaugurei, em 1998, um programa semelhante na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, por amável convite do Professor Manuel Pinto Barbosa. Foi aí que tive como aluno – aluno brilhante e dedicado, tenho gosto em recordar – um jovem de nome Orlando Samões. No ano letivo seguinte, o jovem Orlando apareceu de novo na minha primeira aula, pedindo para voltar a assistir às aulas. Lembro-me de que fiquei surpreendido e que terei ripostado algo do género: “Mas quer subir a nota ainda mais? Creio que terá tido 18 ou mesmo 19!” E o jovem Orlando surpreendentemente respondeu: “Não é para subir a nota. É simplesmente para poder assistir outra vez à cadeira – que no ano passado simplesmente adorei!” E o jovem Orlando assistiu de novo a todas as aulas, participando activamente, fazendo perguntas e comentários, pedindo várias vezes para ir ao quadro (como então se dizia e eu ainda hoje faço questão de dizer) para apresentar as suas questões.
Foi uma experiência inesquecível. E que vividamente viria a recordar dois ou três anos mais tarde, quando o jovem licenciado em Economia Dr. Orlando Samões, apareceu de novo de surpresa, desta vez no IEP. Ele já trabalhava na época em distintas empresas de Consultoria – mas veio dizer-me que gostaria de se candidatar ao Mestrado do IEP em Teoria e Ciência Política. E aqui fez o Mestrado com distinção – com uma dissertação sobre o pensamento político e económico de Friedrich Hayek – seguido do Doutoramento, com uma Tese de grande distinção sobre os chamados “Dois Adam Smith”, o da Riqueza das Nações e o da Teoria dos Sentimentos Morais. De então para cá, o Professor Orlando Samões foi inicialmente meu Assistente e em seguida sucedeu-me amavelmente na docência das minhas cadeiras na Licenciatura do IEP e da minha cadeira na CLSBE, a nossa vizinha Faculdade de Economia, aqui na Universidade Católica. É hoje director da Licenciatura do IEP em Ciência Política e Relações Internacionais e membro da nossa Direção.
Mas há ainda pelo menos mais uma tradição de que este livro é expressão. Em última análise, o ponto de partida original deste livro foi uma conversa com Karl Popper, em 1988, na sua casa em Kenley, ao sul de Londres. Tinha conhecido Sir Karl, um cidadão britânico nascido na Áustria, quando se deslocou a Lisboa em Março de 1987 para falar num ciclo de conferências promovido pelo então Presidente da República Mário Soares, para quem eu trabalhava como consultor político. Durante a visita de Popper a Lisboa — quando proferiu a sua palestra perante mais de mil pessoas no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian — tive o privilégio de falar com ele durante algum tempo — por sinal durante um almoço no muito marítimo Hotel Albatroz, em Cascais — sobre o meu projecto de investigação sobre a sua filosofia política, especialmente a sua crítica ao marxismo e a sua teoria da democracia. Karl Popper teve então a amabilidade de me convidar a visitá-lo em sua casa, em Inglaterra, de forma a podermos conversar mais longamente sobre o meu projecto.
Espero poder contribuir para um melhor entendimento da tradição da liberdade - uma tradição que pertence a todos os que prezam a liberdade
E, efectivamente, fui visitá-lo logo que me foi possível. Viajei de Lisboa para Londres e, depois de ter passado alguns dias na encantadora Round Reading Room da British Library, fui finalmente visitá-lo em Kenley. Era uma casa de campo encantadora, com um belo jardim que ele mantinha imaculado. Karl Popper deu-me então uma literalmente Aula Magistral sobre Winston Churchill e a tradição de liberdade entre os povos de língua inglesa.
Sumariamente, Popper disse que Winston Churchill tinha literalmente salvado a civilização ocidental. Que ele fora o único dirigente político, não só na Grã-Bretanha mas em toda a Europa, a ter-se apercebido da simultânea ameaça de Hitler e do comunismo soviético, pelo menos dez anos antes de ambos terem invadido a Polónia e dado início à Segunda Guerra Mundial, em Agosto/Setembro de 1939. E que Churchill tinha resistido a todo o tipo de acordos com Hitler porque sabia o que os outros não conseguiam entender: que a civilização europeia e ocidental assenta na liberdade e não pode sobreviver sem liberdade.
Isto já era para mim uma lição completa. Mas não ficou por ali. Popper continuou a falar sobre as condições que permitiram que Churchill mobilizasse o seu país, o Império Britânico e por último até os Estados Unidos da América para uma guerra contra Hitler e, depois disso, também uma “guerra fria” contra Estaline.
E acrescentou em seguida algo que se tornou decisivo para a minha vida futura, não apenas a minha vida intelectual. Ele disse que havia algo de singular na cultura política dos povos de língua inglesa: tinham um amor profundo pela liberdade, juntamente com um forte sentido de dever. “É um mistério”, lembro-me de ele ter dito, “podemos chamar-lhe o mistério inglês, ou o mistério britânico. Talvez seja esta ideia britânica do gentleman, alguém que não se leva a si próprio demasiado a sério, mas que está preparado para levar muito a sério os seus deveres, especialmente quando a maioria à sua volta só fala dos seus direitos.” (Por várias vezes, mais tarde, voltaria a repetir esta definição de cavalheirismo).
Finalmente, Karl Popper disse-me que, se eu quisesse levar a sério o meu projeto de investigação sobre a sua filosofia política, deveria ir estudar para Inglaterra. Só vivendo em Inglaterra, ou talvez também na América, é que poderia tentar entender a especificidade da tradição da liberdade de língua inglesa, um pilar crucial da civilização de liberdade europeia e ocidental que ele tinha tentado defender na sua filosofia política.
Esta conversa mudou literalmente a minha vida. De volta a Lisboa, reportei ao Presidente Mário Soares a (quase) ordem de Popper para ir estudar em Inglaterra – com a qual o Presidente Mário Soares imediatamente concordou e apoiou, com a sua proverbial gentlemanly boa disposição. Comecei então a preparar vários processos de candidatura a doutoramentos em universidades britânicas. No decorrer desses processos de candidatura, escrevi a (Sir) Ralf Dahrendorf, Reitor do St. Antony’s College, em Oxford, que tinha sido aluno de Karl Popper na LSE (London School of Economics and Political Science), da qual mais tarde fora Reitor. O Professor Dahrendorf convocou-me para uma entrevista pessoal, em Oxford, após a qual amavelmente aceitou ser meu orientador, se eu fosse admitido pela Universidade — o que felizmente aconteceu.
Em Agosto de 1990 comecei os meus estudos no Reino Unido, tal como Karl Popper me tinha dito para fazer, tendo completado o meu D Phil em Oxford em Julho de 1994. Fui depois leccionar na América, em 1994-1996, mais uma vez encorajado por Popper e agora também por Dahrendorf (nas Universidades de Brown e Stanford, mais tarde em Georgetown, sempre como FLAD Visiting Professor).
A estrutura do livro: em busca do “Mistério Britânico”
Este livro representa por isso basicamente um esforço para reflectir sobre a conversa inicial que tive em 1988 com Karl Popper sobre Winston Churchill e a cultura política dos povos de língua inglesa. Desde então, já passaram mais de trinta anos, nunca esqueci essa conversa. O estudo, sob a orientação quinzenal de Dahrendorf, acompanhado de visitas trimestrais a Popper, reforçou a minha curiosidade pela especificidade da tradição política marítima dos povos de língua inglesa, que Dahrendorf, enquanto alemão e britânico, também tanto admirava. Sob as suas orientações, e também por conta própria, comecei a procurar os livros e os autores que melhor pudessem contribuir para a compreensão da tradição da liberdade entre os povos de língua inglesa. Como já referi, fi-lo estudando e ensinando – a melhor forma de aprender, como costumava dizer Raymond Aron.
No decorrer deste longo percurso, fui trabalhando em várias versões do livro que agora tenho o prazer e o privilégio de publicar com a editora D. Quixote. Uma primeira versão, com muito amável Prefácio de Manuel Braga da Cruz, foi publicada em 2008 pela Editora Princípia, dirigida por Henrique Mota, sob o título A Tradição Anglo-Americana da Liberdade: Um olhar Europeu. Após longa revisão e ampliação, uma edição em língua inglesa foi publicada em 2016, com edição paperback em 2018, pela distinta editora Routledge (The Anglo-American Tradition of Liberty: A view from Europe). Houve entretanto uma amável tradução da edição inglesa na Hungria, em 2017. Em 2019, foi publicada no Brasil uma nova versão, com base na edição em língua inglesa, com muito amável Prefácio do meu colega e antigo aluno, João Pereira Coutinho, sob o título Liberdade como Tradição: Uma visão europeia da experiência anglo-americana (Campinas, Távola Editorial).
Em suma, este livro reflecte e exprime uma verdadeira tradição - a longa viagem de exploração intelectual que levei a cabo desde 1988. Incide principalmente sobre autores influentes – 14 autores - que, na minha opinião, contribuíram para moldar ou para compreender a tradição política dos povos de língua inglesa. É apenas na última secção, a Parte V, que tento articular a minha própria compreensão da especificidade daquela tradição política, com base nas contribuições desses autores e nas minhas próprias reflexões sobre essas contribuições.
O “mistério britânico” de Karl Popper redescoberto e redefinido Uma característica surpreendente dos 14 autores que apresento neste livro é certamente a variedade dos seus temperamentos políticos. Michael Oakeshott, por exemplo, defendia aquilo a que chamava de “disposição conservadora”, ao passo que Friedrich A. Hayek acrescentou um posfácio, que se tornou famoso, à sua obra-prima, The Constitution of Liberty (1960) intitulado “Por que não sou conservador”. Ralf Dahrendorf e Isaiah Berlin, por outro lado, foram muitas vezes descritos como liberais do centro-esquerda, ao passo que Gertrude Himmelfarb e Irving Kristol estão manifestamente associados ao neo-conservadorismo norte-americano. Raymond Plant, por sua vez, é um distinto teórico político filiado no Partido Trabalhista e Par na House of Lords.
Esta variedade pode parecer peculiar. E é certamente peculiar, gostaria de argumentar, à tradição da liberdade entre os povos de língua inglesa. Esta tradição não é monopólio de uma única tendência ou família política. Cresceu entre famílias políticas diferentes e distinguiu essas famílias das suas homólogas no continente europeu.
Poder-se-á talvez dizer que a esquerda, na tradição de língua inglesa, é mais conservadora do que a esquerda no continente europeu; e que a direita, na tradição de língua inglesa, é mais liberal do que a sua homóloga no Continente. Isto é, no entanto, uma versão muito simplificada de um fenómeno complexo que tem vindo a amadurecer ao longo de pelo menos os últimos três séculos, desde a chamada Gloriosa Revolução inglesa de 1688, e constitui uma das principais características diferenciadoras do Mistério-Britânico e da tradição política da cultura política marítima dos povos de língua inglesa.
Winston Churchill, a propósito, foi ele próprio expressão desta versatilidade de temperamentos políticos na cultura política de língua inglesa. Churchill começou a sua carreira política e parlamentar em 1900, como deputado Conservador, transferindo a sua filiação política para os Liberais, em 1904, regressando aos Conservadores vinte anos mais tarde, em 1924. No entanto, em 10 de Maio de 1940, quando foi nomeado primeiro-ministro, foi aplaudido na Câmara dos Comuns sobretudo pelos Trabalhistas e pelos Liberais, não tanto pelos seus colegas Tory. Ainda hoje, os conservadores no continente europeu acham que ele foi demasiado liberal, ao passo que a esquerda continental o considera demasiado conservador. Esta versatilidade política de Winston Churchill foi aliás exemplarmente estudada entre nós pela dissertação de Mestrado no IEP da nossa aluna Filipa do Amparo — que acaba de ser publicada em livro na coleção IEP (Ideais e Estudos Políticos) da Universidade Católica Editora, sob o título A Teoria Política de Winston Churchill: Duas mudanças de partido e a questão da consistência em política.
Voltando ao tema do “Mistério Britânico”, uma das muitas versões que acabei por considerar das mais perspicazes, foi articulada pelo Professor Anthony Quinton. Num capítulo sobre filosofia política, que escreveu para The Oxford Illustrated History of Western Philosophy, Lord Quinton afirmou que “o efeito da importação das doutrinas de John Locke para França foi como ingerir álcool em estômago vazio.” Na Grã-Bretanha, acrescentou Anthony Quinton, os princípios de Locke “serviram para confirmar uma revolução largamente conservadora contra a inovação absolutista,” ao passo que em França a importação das ideias de Locke conduziu ao radicalismo da revolução francesa.1
A eminente historiadora americana Gertrude Himmelfarb expressou o mesmo fenómemo de forma um pouco diferente. Relembrando o trabalho de um famoso representante francês da chamada escola inglesa no continente, o historiador Elie Halévy, Himmelfarb disse:
“O verdadeiro ‘milagre da Inglaterra moderna’ (a famosa expressão de Halévy) não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções – industrial, económica, social, política, cultural – sem recorrer à Revolução.”2
Não tenho a pretensão de ter uma resposta para a pergunta de Lord Quinton sobre o impacto das ideias de Locke para além do canal da Mancha (no Reino Unido designado como “English Chanel”). Nem tenho a pretensão de ter uma explicação para o ‘milagre da Inglaterra moderna’ de Halévy e Himmelfarb – e podemos talvez questionar-nos se haverá uma única resposta para estes problemas.
Mas gostaria de afirmar que todas são versões do “Mistério Britânico” de Karl Popper, sobre o qual ele me falou de forma tão comovente naquele dia de 1988. Talvez tenha sido também esse “Mistério Britânico”, ou “Milagre Inglês”, que Winston Churchill tinha em mente quando decidiu — tão persistentemente, ao longo de 25 anos — escrever a obra em quatro volumes sobre A History of the English-Speaking Peoples. Foi o último dos seus mais de quarenta livros.
O espírito da liberdade
Como argumento na Parte IV do meu livro, não penso que a principal questão que levou Churchill a opor-se ao comunismo e ao nazismo tenha sido em primeiro lugar uma questão de doutrina ideológica. Churchill não recorreu a uma ideologia rival sistemática contra o comunismo e o nazismo. O que o chocou foi precisamente a ambição revolucionária, tanto do nazismo como do comunismo, de reorganizarem a vida social a partir do Estado, impondo aos modos de vida espontaneamente existentes um plano dedutivo baseado numa ideologia total, um esquema de perfeição. No cabo Hitler, no ex-socialista Mussolini, e nos ideólogos comunistas Lenine, Trotsky e Estaline, o aristocrata Winston Churchill viu o fanatismo grosseiro daqueles que queriam destruir todas as barreiras que se opunham ao arbitrário exercício da sua vontade revolucionária: as barreiras do Governo Constitucional, da religião judaico-cristã, do cavalheirismo, das liberdades cívicas, políticas e económicas, da propriedade privada, da família, e de outras instituições civis descentralizadas.
Winston Churchill, permito-me sugerir, entendeu a liberdade e a democracia sobretudo como uma proteção dos modos de vida espontâneos e reais das pessoas. Estes modos de vida existem como lares de pessoas reais, que os herdaram dos seus antepassados e procurarão transferi-los aos seus descendentes. Neste diálogo espontâneo entre gerações, estes modos de vida são gradualmente adaptados e transformados de modo a tornarem-se mais convenientes às novas circunstâncias. Mas não podem nem devem, de modo algum, ser redesenhados pela vontade arbitrária, ou por um esquema abstrato de perfeição, de um único poder. As pessoas, enquanto indivíduos, existem primeiro, antes dos governos, sendo o objetivo destes últimos a proteção da vida, da liberdade, e da propriedade de todos. Este entendimento de liberdade e de democracia foi apresentado por Winston Churchill em inúmeras ocasiões. Uma das mais inspiradoras foi sem dúvida a sua descrição das opiniões políticas de seu pai, um destacado Parlamentar conservador:
“Ele [Lord Randolph Churchill] não via nenhuma razão por que as velhas glórias da Igreja e do Estado não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se nos principais defensores dessas antigas instituições através das quais as suas liberdades e o seu progresso tinham sido alcançados. É esta união entre o passado e o presente, entre a tradição e o progresso, esta corrente de ouro [golden chain], até agora nunca quebrada, uma vez que nenhum esforço indevido lhe foi imposto, que tem constituído o mérito singular e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.”3
Neste sentido, Winston Churchill foi basicamente um intérprete e herdeiro do que o historiador A. L. Rowse chamou de “o espírito inglês”. Rowse argumentou que a característica distintiva deste espírito inglês é a ausência de “angst” ou “ennui”:
“No cerne do espírito inglês está a felicidade, uma fonte profunda de contentamento com a vida, que explica o desejo mais profundo do inglês, que o deixem em paz, e o de deixar os outros entregues a si mesmos desde que não perturbem o seu repouso.”4
Como expuseram Bagehot e Oakeshott, trata-se de uma disposição para desfrutar (a disposition to enjoy), um sentimento interior de felicidade, de celebração da vida e do privilégio de poder desfrutar de um modo de vida que é de cada um, que lhe é familiar, que não lhe foi imposto do exterior. É um temperamento de cepticismo em relação às aventuras políticas, modas intelectuais, esquemas de perfeição, e em relação a qualquer género de especialista que alegue saber melhor como se deve organizar a nossa educação, a nossa cultura e a nossa vida espiritual. Numa palavra, trata-se de uma política de imperfeição que intencionalmente não confia em esquemas de perfeição, e que emerge de uma disposição para usufruir a liberdade – e, por esse motivo, para a defender a todo o custo se e quando ela estiver ameaçada.
A tradição de liberdade
Resumindo, o propósito deste livro é o de apresentar uma argumentação intelectual em defesa da democracia liberal, a partir da cultura política marítima de língua inglesa – que vê a liberdade como tradição e não como rutura ou revolução.
Gostaria a este propósito de sublinhar que se trata da cultura política de língua inglesa e não de uma imaginária raça ou etnia inglesa – termos aliás expressamente ausentes na cultura política de língua inglesa. Gostaria aliás de lembrar que, entre os catorze autores estudados e elogiados neste livro, sete deles não são originalmente britânicos ou americanos, mas europeus continentais. Há dois franceses (Aron e Tocqueville), dois alemães (Strauss e Dahrendorf), dois austríacos (Popper e Hayek) e um letão (Berlin).
Por outras palavras, ao elogiar e tentar compreender a liberdade como tradição na cultura política de língua inglesa, espero poder contribuir para um melhor entendimento da tradição da liberdade – uma tradição que pertence a todos os que prezam a liberdade. Para resumir, partilho a opinião do nosso Amigo Timothy Garton Ash que tem chamado a atenção para a importância da unidade, e da diversidade nesta unidade, do Ocidente, a que ele correctamente prefere chamar de Mundo Livre.5 Uma das principais convicções subjacentes a este livro é a de que a tradição da liberdade de língua inglesa é um dos principais pilares do nosso Mundo Livre.
Notas
1 A. Quinton, “Political Philosophy”, Anthony Kenny (ed.), The Oxford Illustrated History of Western Philosophy, (Oxford, Oxford University Press, 1994), 327.
2 Gertrude Himmelfarb, Victorian Minds: A study of intellectuals in crisis and ideologies in transition, [Chicago: Ivan R. Dee, 1995 (ed. Or: Knopf, 1968)], p.292.
3 Winston S. Churchill, Thoughts and Adventures (Londres: Thornton Butterworth, Ltd., 1934), p. 52.
4 A. L. Rowse, The English Spirit: Essays in History and Literature (Londres: Macmillan, 1945), p. 36.
5 Timothy Garton Ash, Free World: Why a crisis of the West reveals the opportunity of our time, London: Allen Lane, 2004 [ed. Port.: Lisboa, Aletheia, 2005].
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